sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Uma estrada para o fim do mundo...



Há sempre uma estrada a trespassar a paisagem nos filmes de Orhan Eskiköy e Özgür Doğan, e onde ela acaba há-de ser um fim de mundo, remoto, inóspito, atolado em neve. É justo que comecem "on the road" os filmes desta dupla de realizadores, porque o sentido é de descoberta, pelo menos para o espectador: vista do atlas deles, a Turquia próspera e candidata à União Europeia que tem sobressaído nos últimos anos é que parece distante - nem sequer existe.
"Os nossos filmes tentam contar histórias invisíveis," diz Orhan Eskiköy, 28 anos, por "mail". Histórias do interior da Turquia, que os Turcos talvez preferissem não ver (o Governo, certamente, prefere). "Histórias sobre pessoas que não têm voz." Um filho pródigo regressa a casa depois de nove anos de prisão, um Romeu sunita e uma Julieta xiita, Babel linguística numa escola primária no fim da Turquia, histórias assim.
Dois filmes de Orhan Eskiköy e Özgür Doğan vão ser mostrados hoje e domingo no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, às 22h30, concluindo o ciclo de documentários organizado pela Apordoc/DocLisboa para o Festival CCB Fora de Si, onde a principal preocupação parece ter sido a de exibir cinematografias habitualmente ausentes das salas portuguesas - filmes do Uruguai, do Bangladesh e, agora, da Turquia. Na verdade, de Orhan Eskiköy e Özgür Doğan não se vão ver dois filmes, mas um filme e uma amostra, "Hayaller Birer Kırık Ayna" ("Each Dream is a Shattered Mirror"), e "İki Dil Bir Bavul" ("On the Way to School"), respectivamente o primeiro e o próximo títulos da filmografia dos realizadores.
Este último é sobre um professor turco que chega a uma aldeia para ensinar crianças que só falam Curdo: como vão comunicar? É uma amostra, dizia-se, mas convém não subestimá-la: são 15 minutos, mas de corpo inteiro. A figura solitária do professor recortada contra uma comunidade impenetrável, a silenciosa intimidade da câmara quando entra no interior das casas, a noção de tempo, o sopro burlesco (os momentos em que a impotência se transforma em comédia, como numa peça de teatro absurdo), anunciam um filme que vamos querer ver.
Não se sabe quase nada sobre Orhan Eskiköy e Özgür Doğan, para além da lista de festivais de cinema documental por onde os seus filmes têm passado. São ainda muito jovens, talvez lhes falte ainda o "breakthrough" (é agora, diz Eskiköy, vai ser com "On the Way to School"), mas chegam com boas recomendações: Nuri Bilge Ceylan, realizador de "Uzak" ("Longínquo") e "Climas", o único cineasta turco contemporâneo conhecido em Portugal, ofereceu-lhes parte de um prémio monetário que lhe foi atribuído no Festival de Cinema de Istambul em 2003. "Em 2002, Nuri Bilge Ceylan foi o único jurado de uma competição na Turquia. Ele não deu nenhum prémio ao nosso filme. Mas quatro ou cinco meses depois, durante a cerimónia de entrega de prémios no Festival de Cinema de Istambul, deu-nos parte do seu próprio prémio. Numa entrevista, disse que tinha visto o nosso filme outra vez, depois da competição, e que ficou muito impressionado. Ficámos muito surpreendidos mas nunca o chegámos a encontrar para lhe agradecer," explica Orhan Eskiköy.
Orhan e Özgür conheceram-se na faculdade, em Ancara. Özgür, um pouco mais velho, precisava de fazer um documentário para acabar o curso, Orhan, que estava no segundo ano de Relações Públicas, tinha umas ideias, e juntos fizeram o primeiro filme. "Decidimos contar a história do irmão de Özgür. Ele estava preso por causa das suas ideias políticas. Mas a sua libertação seria em breve." "Each Dream is a Shattered Mirror" (título pungente para um filme pungente: cada sonho é um espelho estilhaçado) é o primeiro documentário da dupla. Lá está a estrada e o fim do mundo: alguém se pôs a caminho, é aquele de que todos falam, pai, mãe e irmã. Até ele chegar, no último terço do filme, o seu caso é apresentado: Çoskun foi estudar para a cidade, mas foi preso por causa do seu activismo político, para vergonha do pai, aflição da mãe e hipotecando o futuro da irmã, que abdicou dos estudos para ficar com os pais. Nunca saberemos o que fez Çoskun para ser preso, a única coisa que diz é que isso aconteceu por ter expressado o seu pensamento. "Há um padrão que nos é imposto. Toda a gente é obrigada a obedecer. Quem se opõe é preso. Não são casos excepcionais, uma, duas, três pessoas. São milhares de pessoas," diz Çoskun no filme. Nunca a palavra "Curdo" é mencionada, é o drama da desintegração familiar que ocupa o primeiro plano, mas os realizadores têm-se mostrado sensíveis à causa curda em filmes posteriores.
Como é que os média lidam com a questão curda e qual a percepção que existe na sociedade turca? "É difícil responder," diz Orhan. "Não conhecemos a realidade. O Governo turco gastou 300 mil milhões de dólares nesta guerra em 30 anos. Podíamos ter construído a Turquia três vezes com esse dinheiro. O Governo mente, servindo-se dos média, e as pessoas acreditam. Há dez anos os Curdos queriam territórios. Mas agora querem direitos democráticos, como aprender a sua língua, serviços de saúde, investimentos económicos, etc..."
Todos os anos, o Governo turco destaca professores recém-licenciados para escolas de aldeias curdas. O Curdo é a língua oficialmente não reconhecida na Turquia, apesar de ser a língua-mãe do segundo maior grupo étnico do país (calcula-se que entre 10,6 e 15 milhões de Curdos vivam na Turquia, o equivalente a 20 por cento da população). Orhan e Özgür filmaram "On the Way to School" ao longo do último ano lectivo, numa aldeia junto à fronteira com a Síria, um fim de mundo. "O Governo limitou-se a pôr lá uma bandeira e esqueceu todas aquelas pessoas," diz Orhan.
Perguntamos-lhe como conseguem fazer filmes sobre temas críticos e escapar ilesos. "Não somos realizadores conhecidos, portanto ninguém deu por nós durante a rodagem. Mas depois de 'On the Way to School' vamos ser notados." Lembrem-se onde é que o viram primeiro.

(Fonte: Público)

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