Orhan Pamuk: "Eu pertenço à língua turca"
Embora não o pareça, “Noites de Peste” é um livro sobre a repressão. Sobre o aproveitamento político de uma quarentena numa ilha fictícia que poderia ser a Turquia de outrora se não fosse a de hoje. A ambas pertence o escritor que em 2006 recebeu o Nobel da Literatura.
Ainda escreve dez horas por dia e é nesse ritmo que, aos 71 anos, está a trabalhar num romance autobiográfico sobre a sua adolescência em Istambul, a cidade à qual pertence, na língua que é a sua. Assim culmina esta conversa com Orhan Pamuk — com a afirmação: “Eu pertenço à língua turca.” Não devemos admirar-nos. Desde os 20 anos que o Nobel da Literatura em 2006 e filho de um Império Otomano em declínio se dedica a retratar o seu país, a dissecá-lo, a recriá-lo com a imaginação e com as garras que, por vezes, a escrita deve ter. Agora, em “Noites de Peste” (Presença, editora portuguesa do autor), um gigante de mais de 600 páginas que levou três décadas a gestar-se, analisa a ascensão do nacionalismo num ilha fictícia assolada pela terceira peste pandémica, em 1901. Um livro tão realista como alegórico do presente numa Turquia “cada vez mais cruel e autoritária”. É a partir dela e das suas contradições — políticas, geográficas — que conversou com o Expresso.
Este livro é uma ideia antiga. Em “A Casa do Silêncio” já tinha abordado o tema da epidemia. Porquê dedicar-lhe um romance inteiro?
Nesse livro dos anos 80 havia uma personagem que era um historiador otomano a pesquisar sobre a peste. Mas fiquei com vontade de escrever um romance que se passasse inteiramente durante uma epidemia. Porque as epidemias, em especial as dos tempos medievais, são grandes focos de drama humano e histórico. Esta ideia estava presente em “A Casa do Silêncio”, onde quis que as personagens refletissem sobre como a nossa individualidade e as nossas ideias se desenvolvem quando somos confrontados com a morte, quando ela está perto e é palpável.
Além da morte, que outras noções estão em causa numa epidemia?
As pestes medievais ocorreram muito antes de, em meados do século XIX, a Humanidade descobrir as bactérias e, depois, as vacinas. Por isso, a morte por peste estava num plano mais metafísico, porque a Humanidade não compreendia de onde provinha a doença. As pessoas iam logo ter à ideia de Deus. Pensavam que Deus as estava a castigar. Na Turquia, mesmo em pleno século XXI, houve quem acreditasse que a pandemia de coronavírus era uma punição de Deus e, portanto, algo de inevitável. De repente, as pessoas começam a morrer e só se consegue pensar em salvar-nos e em salvar a família e os amigos. Por outro lado, já nos tempos medievais se sabia o que era uma quarentena — o isolamento dos doentes. A quarentena significa que um Governo, qualquer um, imporá regras severas e até cruéis. Talvez esta seja a razão por que há seis anos decidi finalmente escrever um romance sobre a peste: porque o Governo turco, o Governo de Erdogan, está a tornar-se cada vez mais cruel, severo e autoritário. Então pensei em construir um romance realista que fosse também uma alegoria sobre os dias de hoje.
É interessante que estivesse a escrever sobre uma pandemia quando a de coronavírus aconteceu. Isso influenciou o rumo do romance?
Sim, foi uma imensa coincidência. Mas, sabe, sou um escritor lento, em especial se o romance tiver um carácter histórico. Os meus amigos diziam: “Quem vai ler este romance esotérico e bizarro sobre a peste, que decorre há 120 anos?” E, de repente, aquelas coisas sobre as quais eu estava a pesquisar — a quarentena, o distanciamento social, o confinamento — começaram a invadir os jornais de todo o mundo.
Tornou-se a nossa realidade.
No início foi um choque. Esses mesmos amigos ligavam-me para dizer: “Tens tanta sorte!” Porque esta não é a minha primeira coincidência: quando estava a escrever o livro “Neve”, sobre o Islão político, aconteceu o 11 de Setembro. Mas a questão da ‘sorte’ é muito relativa. Os meus tios, que viviam a dois quarteirões daqui, foram das primeiras vítimas mortais do coronavírus em Istambul. Na altura, muita gente me perguntou sobre como me sentia a escrever em confinamento. Digo sempre que, enquanto escritor, vivo confinado há 48 anos. Para escrever romances é preciso viver numa espécie de quarentena.
Que importância teve para si a restante literatura sobre epidemias, autores como Defoe ou Camus?
Diria que foram clássicos essenciais. De Daniel Defoe, temos o “Diário do Ano da Peste” [PIM Edições], de 1722. E há também “The Bethroted”, do italiano Alessandro Manzoni. Albert Camus, por sua vez, com “A Peste” [Livros do Brasil], não estava interessado na quarentena e nas suas regras. Abordei o assunto nas minhas aulas de literatura comparada na Universidade de Columbia, não da perspetiva epidémica, mas política. Se em vez de ‘peste’ escrevermos ‘nazis’, o resultado é o mesmo. É um romance moral, menos sobre realismo e comportamento humano, do que sobre atitudes como a defesa, a solidariedade, o pânico ou a cobardia. De qualquer modo, a mim interessava-me a quarentena e encontrei muitas histórias e teses escritas sobre o tema. Preocupava-me que os leitores pensassem que escrevi o livro após o coronavírus, para aproveitar o sucesso comercial. Por isso publiquei um longo ensaio no “New York Times”, a explicar que não ‘cozinhei’ este livro enorme em cinco minutos. A reação dos editores foi perguntar logo quando é que estaria pronto. Subitamente, o meu romance estava na ordem do dia.
Decorre numa ilha fictícia, Minguer, no Mar Egeu. Que lugar é este?
Se as epidemias concentram uma grande dose de drama, isso também acontece com o isolamento. O meu livro “Neve” [2002] está situado numa cidade isolada do resto da Turquia, pelo que a história progride mais depressa. O mesmo vemos na “Montanha Mágica”, de Thomas Mann. Gosto, por exemplo, de situações em que um avião está a atravessar a Amazónia e se despenha, e os passageiros fazem coisas estranhas como devorarem-se uns aos outros, matarem-se ou inventarem um novo regime político. Portanto, era importante criar um ambiente deste tipo. Queria explorar as origens do nacionalismo e precisava de um lugar onde este se pudesse desenvolver. Também me apetecia acrescentar ao livro qualquer coisa que ultrapassasse o realismo. Tinha uma história panorâmica sobre o declínio do Império Otomano, e isso era demasiado pesado, demasiado duro. Precisava de uma aura de doce artificialidade. A minha ilha é bonita, tem um tom de conto de fadas, lembra “As Viagens de Gulliver”, de [Jonathan] Swift. Ou, de novo Daniel Defoe, que além de ter escrito o melhor livro sobre uma epidemia também escreveu o melhor livro sobre uma ilha, chamado “Robinson Crusoé”. Ele é o meu herói, escreveu as melhores obras sobre as temáticas que mais me interessam.
Numa entrevista recente disse que o livro é nostálgico. Porquê?
É nostálgico da cultura da última década do Império Otomano. Quando eu era criança, há 60 anos, a casa da minha avó estava cheia de fotografias e retratos de doutores, paxás e burocratas desse período, que aparecem no meu romance. É esse tipo de nostalgia, pela vida diária de um império em decadência. E é também uma tentativa de homenagear os burocratas em cujas mãos o Império se desfez e desapareceu. A sua civilidade e cultura, o seu desânimo. A sua dedicação. Perto do final, há uma cena em que todos são colocados num barco e mandados de volta a Istambul. Não se trata propriamente de uma homenagem ao Império Otomano em si, mas de tentar compreender as pessoas que o conduziram à extinção.
Podemos dizer que a geografia do livro é antieurocentrista?
Nos grandes romances há sempre grandes cidades. Em Dostoiévski e em Tolstoi estamos em São Petersburgo e em Moscovo. Na maioria dos romances clássicos estamos em Paris, em Londres ou em Berlim. Por vezes, em Milão. Ora, as cidades do meu livro estão centenas de quilómetros a sul dos centros urbanos do tempo em que o romance foi inventado, ou seja, Londres e Paris — porque foram Dickens e Balzac que inventaram o romance como tal. Agora estamos fora da Europa, de Xangai a Minguer, passando por Bombaim, a analisar a migração de micróbios de leste para oeste a partir da descoberta da peste, que aconteceu em Xangai. A história decorre naquela que é conhecida como a terceira peste pandémica, que começou em 1897 e continuou até meados de 1920, e na qual morreram 20 milhões de pessoas na Ásia, sobretudo na China. O romance não está centrado na Europa porque na Europa morreu muito pouca gente. E porquê? Bom, os europeus eram mais educados e mais recetivos aos argumentos da quarentena, enquanto noutras partes do mundo — pelo colonialismo ou por ignorância — as pessoas não paravam de morrer e isso não era sequer conhecido no Ocidente.
Depois de publicar o livro, foi levado a tribunal por desrespeito a Kemal Atatürk. Sob que argumentos?
Deixe-me esclarecer que o processo não está concluído. Simplificando, uma parte do Governo quer processar-me e a outra não. Agora estamos numa espécie de limbo: o meu dossier foi enviado de volta para Ancara e desapareceu no labirinto da burocracia judicial turca. O que aconteceu é que me acusaram de fazer uma correspondência entre o fundador da fictícia República da Minguéria, uma das figuras principais do romance, e Kemal Atatürk. Como se ambos fossem a mesma pessoa. Na verdade, a minha personagem não é Atatürk, e existem elementos claros que os separam. Por exemplo, ele gostava de bebidas alcoólicas e a minha personagem não, além de não se lhe parecer fisicamente. Mas que importa? Há uma péssima tradição no sistema legal turco: basta alguém escrever algo polémico e o procurador abre uma investigação. Sob o seguinte argumento: “Se ele não for culpado, vai defender-se e nada vai acontecer.” É isso que se passou, ou seja, nada. Apenas notícias nos jornais. Durante um tempo tive medo, não de acabar na cadeia, mas de o livro ser banido. Porque estes casos acabam sempre por se tornar políticos.
A dada altura, contou que começou a perguntar ao procurador: “Em que página leu isso?” E ele não sabia dizer. Só esta cena dava um livro.
Perante uma acusação, esta gente não se preocupa em saber se é ou não válida. Não lê o livro, apenas dá início ao processo judicial. Então, é preciso ir com calma e agirmos como se eles o tivessem lido. Felizmente, o livro tem vendido bem, tudo está bem e agora estou aqui a falar consigo. Às vezes dá-me vontade de explicar aos procuradores: “O que vai conseguir é tornar o livro mais popular.”
Falemos sobre a quantidade de pessoas que, no seu país, são presas por dizer o que o regime de Erdogan não quer ouvir.
Muitas, muitas. Não sei com exatidão, teria de perguntar às organizações de direitos humanos. Sou um privilegiado, sou famoso, escrevo os meus romances, digo mais ou menos o que me apetece. Corajosos são os jornalistas turcos que criticam Erdogan e enfrentam processos por dizer em público o que não ‘deviam’ sobre o genocídio arménio ou sobre o que fazem aos curdos. São postos logo na cadeia. Há pessoas detidas por insultar Erdogan. Algumas talvez preencham os critérios, mas a maioria está presa apenas por criticar. Veja casos proeminentes como o de Osman Kavala [ativista sentenciado a prisão perpétua em 2022]. A Turquia não tem liberdade de expressão. Temos uma democracia eleitoral, muito limitada. Erdogan pune qualquer pessoa com a mínima chance de se transformar num verdadeiro opositor e ganhar uma eleição. Ele processa-o e impede-o de sequer concorrer.
Já foi perseguido, teve livros queimados na praça pública e foi o primeiro escritor do mundo islâmico a condenar a fatwa contra Salman Rushdie. Como se lida com estas situações?
Bom, a minha mulher está sempre a insistir: “Deixa-me ver o que disseste.” Vivemos uma vida nestes moldes, não sou um super-homem a combater o inimigo da direita fascista. Tenho cuidado. Se estou vivo e a falar consigo é porque, às vezes, tive de ficar calado, de me impor silêncio. Sou o vice-presidente do International PEN e defendemos a liberdade de expressão. Mas confesso que nem sempre sou livre de me expressar. Tenho sobrevivido porque sou ‘famoso’ e porque tenho cuidado. Posso até ser corajoso, mas há limites.
É uma gestão?
É um saber navegar entre perigos. A minha mulher avisa-me: “Disseste isto a semana passada, não o digas de novo.” Nos últimos 20 anos esta tem sido a minha vida e graças a Deus sobrevivi, porque quando o Governo não consegue silenciar alguém pela via legal, usa outros métodos, como o assassínio. Por outro lado, ironia das ironias, há 17 anos que vivo com guarda-costas contratados pelo próprio Governo. Metade do Governo persegue-me, a outra metade dá-me guarda-costas. Costumo fazer uma piada com isso: antes precisava de três, agora só preciso de um. É um progresso, estamos a melhorar.
Já li esta observação, mas é bom ouvi-la de si diretamente.
É bom rir-se. A única forma de sobreviver é através do humor.
O mundo ainda se sente ameaçado pela palavra escrita. Porquê?
A palavra escrita não é perigosa, mas há grupos radicais que abusam dela com a sua interpretação, tornando-nos os seus alvos. Há tabus. Mas se ninguém tivesse reagido aos “Versículos Satânicos” de Salman Rushdie, o livro teria sido esquecido e não teria mudado nada no mundo. De facto, os fanáticos radicais e os governos repressivos agigantam as coisas — se Salman tivesse escrito uma simples fantasia, eles tê-la-iam exagerado. O dilema dos escritores é: dou um passo atrás quando as coisas adquirem proporções exageradas ou, pelo contrário, mantenho-me firme na minha posição? Salman fez isto, é um homem corajoso. Escrevi muito sobre o ataque de que foi vítima. Haverá sempre gente autoritária que quer punir, obter vantagens ou fazer política por meio da ameaça e da morte. Isto vai continuar. Veja o que está a acontecer entre Israel e o Hamas. A situação dos escritores é insignificante ao lado disso.
Qual é a sua visão desta guerra?
A Humanidade tornou-se ali verdadeiramente selvagem. Os dois lados estão a comportar-se de um modo deplorável.
Como interpreta a posição da Turquia?
Os turcos seculares e pró-europeus estão especialmente divididos. Porquê? Porque são muçulmanos — pode-se ser muçulmano e secular — e, mesmo que defendam ideais ocidentais, sentem-se mais próximos da dor dos palestinianos. E porque, infelizmente, a chamada Europa civilizada, assim como os Estados Unidos, estão também a desrespeitar os seus ideais. Então, é um tormento. No início, o Governo turco apercebeu-se disto e não tomou partido, apregoando a calma para ambos os lados. Mas de repente, nos últimos dez dias, Erdogan mudou a sua atitude, e agora está abertamente a apoiar o Hamas.
E o que pensa disso?
É algo tão delicado que, para mim, os únicos critérios válidos são a liberdade de expressão, os direitos humanos e os direitos das crianças. E penso que os ataques israelitas são intoleráveis. Confinar estas pessoas a uma espécie de prisão a céu aberto e bombardear, e bombardear — não, isso não é uma guerra. No começo, fui compreensivo em relação a Israel, assim como a maior parte do mundo. E compreendo tanto a dor do povo palestiniano quanto a dos judeus e dos israelitas. Há tantas contradições que não há um modo totalmente justo de falar sobre o tema. Sou também professor na Universidade de Columbia, em Nova Iorque — agora estou em Istambul, a gozar de férias —, e há lá uma espécie de censura, em que as pessoas assinam petições, mas escondem os seus nomes. No campus de Columbia, os estudantes pró-Israel e os árabes já estão a atacar-se uns aos outros. Por outro lado, há muitos judeus que, fora e dentro de Israel, estão a criticar com firmeza Benjamin Netanyahu.
Várias vezes referiu que tenta evitar a política nos seus livros.
Mas este é um livro político. Talvez um dos mais políticos que escrevi, ou aquele em que a política surge mais ligada à vida quotidiana, por se passar em tempos de quarentena. A acusação de que fui alvo vem daí: da interpretação, quanto a mim errada, de que todos os mitos nacionais — a lenda do fundador do meu país, a lenda da nossa bandeira, as histórias sobre os nossos heróis, as imagens nas notas bancárias — surgem no meu livro como falsas e exageradas.
Isto leva-nos a outra crítica feita ao romance, a de ser ‘orientalista’. Concorda?
Não, porque não sou um orientalista. Essa acusação recaiu sobretudo em “O Meu Nome É Vermelho”, onde eu estaria a deturpar o Oriente sob uma perspetiva de dominação. É nisto que assenta, aliás, a ideia de orientalismo de Edward Said. Conheci-o, éramos amigos e foi uma espécie de pai para mim. Na altura, a acusação de orientalismo veio dos apoiantes da direita na Turquia. Embora não concorde com ela, consigo perceber que se critique um ligeiro tom exótico, de conto de fadas, do livro. Mas não me quero defender. Que eu saiba, “Noites de Peste” foi atacado noutro sentido.
Mas carrega com uma certa ideia pitoresca do Oriente.
De facto, um quinto ou um sexto do livro ocupa-se de descrever a elite da realeza otomana, as princesas, os noivos, os sultães. Isso sim, é sumarento, e embora eu o considere altamente realista, pode haver quem o considere orientalista. Da mesma forma, podem-me acusar de retratar esta elite como estúpida, ao que respondo que se trata, antes, de uma descrição realista da aristocracia otomana em declínio. Como se casavam, como viviam, o que faziam, a que aspiravam — sim, presto atenção a estas questões e gosto muito de escrever sobre elas. Não me importa se as qualificarem de orientalistas.
O sultão do romance navega entre o Oriente e o Ocidente. É este o lugar histórico da Turquia — fazer essa conexão?
Nessa altura, em 1901, a Turquia tinha um lugar muito relevante no jogo de forças mundial. Comparativamente, agora é menos importante. O sultão Abdul Hamid, embora fosse uma figura repressiva e reacionária, convidava os médicos mais caros do planeta para os nossos hospitais e tinha uma visão moderna sobre a construção, sobre a engenharia. Hoje, a importância da Turquia reduz-se a ser membro da NATO, não tem nada a ver com a população ou com o poder, ou com a força do seu exército. Isto porque encolheu, passou de império a país.
E o que pensa da forma como se desenhou a relação entre a Turquia e a União Europeia?
Na primeira década deste século, a UE estava muito interessada em promover a entrada da Turquia. Eu ia de país em país a falar dos meus livros e esse era um sentimento claro. Infelizmente, não aconteceu. Em parte, por culpa da própria Turquia e do seu desrespeito pelos direitos humanos, pela situação no Chipre, pela contínua repressão dos curdos. Neste momento, Erdogan está a mostrar-se amigável com Putin, irritando a UE. E, mesmo assim, acalenta o sonho — irrealista — de entrar na Europa. Quando as prisões estão cheias de pessoas que foram presas por criticarem o Governo, não há hipótese de sequer chegar perto desse objetivo.
A Turquia é necessária à UE no que toca à política de imigração.
Sim, mas não se trata de uma necessidade digna. Há duas situações: ou a Turquia tem a necessidade geopolítica de subornar a Europa e a Europa é paciente com isso, ou — o que é mais indigno — a Turquia embolsa dinheiro da UE para travar os migrantes enquanto Erdogan ameaça a UE. “Se me criticares muito, ou se eu sair do Governo, os migrantes passam e envenenam a tua vida.” O Governo turco faz isto sistematicamente. Diz que está ao serviço da Europa, servindo de tampão à imigração, e num sentido a Europa está muito contente com Erdogan.
Mas, deste modo, a Europa torna-se cúmplice da Turquia.
Sim. A UE e Erdogan partilham um grande pecado. Ninguém na Europa quer imigrantes. Nas últimas eleições, o candidato da oposição defendia que a Turquia deixasse de ter este papel. Claro que não era muito popular na Europa e não recebeu o seu apoio. Lamentavelmente, Erdogan foi reeleito.
O que pensa dos que afirmam que Erdogan está a construir um ‘neo-otomanismo’?
Há nisso alguma verdade. Celebrámos há dias o centésimo aniversário da República da Turquia. Ou seja, há 100 anos que somos uma república moderna, supostamente secular e pró-europeia. Essa Turquia moderna não respeitava o Império Otomano — nos meus manuais escolares, por exemplo, os otomanos não eram representados como retrógrados, pré-modernos e não suficientemente europeus. Erdogan modificou essa retórica. Disse às pessoas que os otomanos eram bons, e isso levou a imprensa ocidental a falar de ‘otomanismo’. Porém, o próprio Erdogan sabe que o ‘otomanismo’ não é uma realidade — pelo menos enquanto a Turquia estiver a implorar por mais aviões aos Estados Unidos.
Há uma romantização do Império perdido?
Totalmente, é uma ideia romântica. Os meus primeiros livros foram romances históricos que abordavam os tempos otomanos. Ora, há 40 anos ninguém fazia isto. Hoje as coisas mudaram e fico feliz por isso. Os otomanos não eram inteiramente maus ou inteiramente bons. É um pouco mais complexo.
Sente-se otimista quanto ao futuro do seu país?
Por vezes. Tenho os meus momentos. Penso que as ideias de liberdade e os valores europeus, assim como o respeito pelos direitos das mulheres, irão chegar inevitavelmente à Turquia, mais tarde ou mais cedo. Como esquerdista liberal e ingénuo que sou, ainda acredito que vamos fazer parte da UE, embora não nos próximos 20 anos. Quanto mais rico for um país, mais é provável que desenvolva essa exigência de respeito pelas minorias. Mas também sou pessimista, porque, como já aqui referi, a importância da Turquia diminuiu. Só é importante para evitar que os imigrantes asiáticos e africanos ingressem na Europa. E quanto mais imigrantes ingressarem na Turquia, mais difícil será para a UE ‘engolir’ que a Turquia faça parte dela. Estas são as contradições do presente, que desfocam e obscurecem o futuro do país.
Pode falar da noção de pertença a um país? De como Orhan Pamuk pertence à Turquia?
Pertencer é ser-se o que se é num espaço, num lugar, num tempo, numa geografia que se quer defender. Mas mais do que a geografia turca ou a população turca, o que me apetece defender é a língua turca. Eu pertenço à língua turca e, nesse sentido, sou um conservador. Não quero que a minha língua se modifique demasiado, em termos de léxico e de regras. Os turcos vieram da China ocidental — os uigures, hoje severamente perseguidos, são os nossos tetravós. Durante dois mil anos, este povo caminhou para oeste. Tudo neles — os olhos, as feições — era asiático. Hoje, os turcos são mais ou menos como eu. A sua cultura e costumes mudaram. Na linguagem, mudaram os verbos e grande parte do léxico, ainda que haja palavras (como ‘água’) que permaneceram iguais. O que não se alterou é a estrutura da língua. A linguagem uigure e a turca partilham a mesma estrutura. Quando falo da identidade turca, falo da linguagem, e não quero que o dicionário integre termos europeus, americanos ou informáticos. Há 40 anos, o francês travou uma guerra contra a colonização do inglês. Eu pertenço à língua turca.
Ainda escreve dez horas por dia?
Sim. Claro que vou envelhecendo, mas escrever continua a fazer-me feliz, tal como quando tinha 20 anos e estava a trabalhar no meu primeiro romance. Com Albert Camus e Jean-Paul Sartre, penso que a vida diária é aborrecida. O interessante é viver na imaginação, na fantasia. Fiz a opção de viver assim e tive a sorte de conseguir impor-me como escritor profissional. Passo o tempo a imaginar como uma criança e a escrever como um adulto. E a ganhar dinheiro com isso. Que mais posso pedir?
Está a escrever um novo romance?
Estou, comecei há dois anos e interrompi. E nos últimos meses voltei ao trabalho. É um romance sobre a minha adolescência em Istambul. Tem corrido bem e tenho escrito dez horas por dia. Não há nada mais que possa fazer, além de dar entrevistas e responder a perguntas políticas! Não sei quando irei acabar. Se os meus amigos me perguntam isso e eu digo: “Em quatro meses”, eles contrapõem: “Então, vai demorar 40 anos.” Não confiam em mim, e fazem bem.
(Fonte: Expresso)
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