quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

"As Ervas Secas" de Nuri Bilgi Ceylan nos cinemas portugueses

Chegou aos cinemas nacionais “As Ervas Secas”, a obra do cineasta Nuri Bilge Ceylan escolhida para representar a Turquia nos Óscares do próximo ano.

Tudo ou nada, parece ser o conceito de vida que caracteriza em larga medida o comportamento daqueles que habitam o perímetro de uma pequena aldeia situada numa zona remota da Península da Anatólia, igualmente conhecida como Ásia Menor, banhada a Norte pelo Mar Negro, a Sul pelo Mar mediterrâneo e a Oeste pelo Mar Egeu, e que corresponde a mais de metade da Turquia. 

Não é a primeira vez que o realizador do agora estreado “Kuru Otlar Ustune” (“As Ervas Secas”), Nuri Bilge Ceylan (nascido em Istambul a 26 de Janeiro de 1959), investe numa ficção situada naquele fim-do-mundo para onde alguns dos seus compatriotas são deslocados quase sempre obedecendo a um planeamento burocrático determinado pelo poder central exercido a partir da capital, Ancara.

Basta recordar o vencedor da Palma de Ouro e do Prémio FIPRESCI (Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica) no Festival de Cannes de 2014, o belíssimo “Kis Uykusu” (“Sono de Inverno“), ou o igualmente premiado em Cannes com o Grande Prémio do Júri em 2011, “Bir Zamanlar Anadolu’da” (“Era Uma Vez na Anatólia”), para se constatar a óbvia opção do cineasta, argumentista, fotógrafo e ator por um espaço muito especial do ponto de vista geográfico e simultaneamente do ponto de vista sociológico – universo de contrastes relevante num país dividido entre dois continentes cujas visíveis diferenças condicionam muitas e agrestes vezes o estabelecer de pontes necessárias para se erguer uma réstea que seja de unidade nacional digna desse nome, um diálogo solidário capaz de sustentar a salvaguarda de um futuro que se pode e deve desejar sempre mais radioso.

NUMA TERRA SEM OUTONO NEM PRIMAVERA

Nesta que considero ser, no nosso mercado, a última grande estreia comercial em sala de 2023, iremos acompanhar um professor, Samet (Deniz Celiloglu), e a relação algo próxima e relativamente ambígua que aqui e além estabelece com uma aluna, Sevim (a estreante Ece Bagci), uma adolescente meio inocente meio perversa que nutre por ele uma subliminar e em boa verdade não muito secreta paixão, se considerarmos a atitude que revela nos pequenos grandes sinais de sedução e de aproximação física que de algum modo são o reflexo natural de uma atmosfera de amizade gerada por insinuações e um ou outro indício de atracção mal disfarçado por parte do seu mestre.

Há nesta relação homem adulto/jovem rapariga e no modelo utilizado para a encenar uma nítida vontade por parte da realização de nos manter sempre na expectativa sobre a real natureza dos comportamentos de uma e outra personagem. Facto, aliás, que irá ser dominante na relação de Samet com outras personagens relevantes no interior desta ficção, figuras complexas no desfiar da sua humanidade e que se vão cruzar com Samet de forma bastante incisiva no plano da revelação pessoal, sobretudo num contexto imposto por circunstâncias exteriores que se perfilavam redutoras de uma possível mas atribulada afirmação da sua verdadeira personalidade.

De igual modo, e para reforçar a sensação das barreiras impostas pela realidade política, social e económica onde estes homens e mulheres estão inseridos, cúmplices ou não do panorama cultural e ideológico que domina o pensamento da região, nunca será posto de lado o sentimento geral de que esta comunidade, quer no exterior quer no interior da escola pública, vive na sombra “paternal” das práticas quotidianas que seguramente coincidem com o radical olhar penetrante do pai da Pátria, sob a efígie do patriarca fundador de uma nova era dita moderna, por romper com ancestrais práticas otomanas, o militar e estadista Mustafa Kemal Ataturk (1881-1938), primeiro Presidente da República da Turquia, proclamada a 29 de Outubro de 1923. Mesmo enquanto busto, lá está ele para recordar quem ainda continua a influenciar certos caminhos e preceitos institucionais na Turquia. Mesmo que seja memória viva do passado, há vestígios de uma autoridade pretérita que desemboca nos dias de hoje, similares ao respeitinho pelas normas e regulamentos que irão sobressaltar o percurso mais ou menos rotineiro do professor Samet, assim como de um outro seu colega com quem partilha a casa, Kenan (Musab Ekici).

Tudo porque Sevim e outra colega os acusam de contactos inapropriados que prefiguram aos olhos das autoridades escolares abusos de natureza sexual, naturalmente proibidos, mas nunca comprovados por quem aceitou as ditas acusações sem as confrontar com o respectivo contraditório. Nada de espantar, sobretudo numa escola onde alguns docentes não se furtam a prestar serviço exercendo o papel de esbirros repressores, vasculhando nas malas e secretárias dos discentes aquilo que consideram inadequado, como por exemplo, um isqueiro, um caderno escolar que não corresponda ao modelo oficialmente aprovado e, desgraça das desgraças, um espelho ou uma simples e porventura singela carta de amor. Neste caso, a carta de Sevim que Samet, contra a vontade da jovem, irá confiscar, facto que dará origem ao sobressalto emocional da rapariga e ao consequente acto de denúncia.

Todavia, a relação de Samet com as mulheres não se fica pelo universo da adolescência, e pouco a pouco iremos seguir uma outra e mais importante, melodramaticamente falando, relação adulta com Nuray (excelente prestação da actriz Merve Dizdar), figura da mulher emancipada, submetida a preconceitos que persistem e parecem não se desvanecer com facilidade, mas livre na medida em que subverte alguns dos limites impostos pela sociedade e realidade circundantes. Será ela que irá desafiar Samet, de forma indireta mas calculada, a despertar o fulgor do desejo e a assumir uma relação mais íntima que ao início parecia não ser provável.

Todavia, pouco depois sentimos a relação algo condenada, já que a partir de certa altura Nuray parece deslocar o seu olhar sedutor e a sua preferência para Kenan. E fá-lo literalmente nas barbas de Samet. Parte substancial do filme passa a ser então o jogo de máscaras pontuado por encontros e desencontros de Samet com Nuray, de Samet com Kenan, palavras e discussões mergulhadas na mais diversa subjectividade e também no lado físico e objectivo do amor de uma mulher, mutilada pela explosão de um atentado mas inteira na sua vontade de seguir em frente com a vida que para ela faz sentido, independentemente do que Samet, Kenan ou outros possam pensar.

Tudo bate certo no quadro estrutural de um argumento servido por uma planificação clássica, mesmo quando as coisas não são lineares, até ao momento em que Nuri Bilge Ceylan decide lembrar-nos, através de um expediente da linguagem áudio e visual, que poderíamos apelidar de distanciação brechtiana, que as acções e emoções das personagens e a solidez da sua relação não passam de uma ficção, como a querer dizer-nos: não se deixem levar pela superfície das coisas, olhem antes para o que está por detrás da sensação de verdade, a verdade da mentira. Numa sequência fulcral, Samet abandona o quarto onde já estava escrito nas estrelas o pulsar sexual nascido de uma longa conversa confessional entre ele e Nuray, que os levaria finalmente ao contacto físico e íntimo. Em suma, sexo, ponto final. Tudo começa por um algo intrigante mas compreensível apagar de luzes nas salas contíguas do referido quarto.

Depois de cumprir o pedido de Nuray, em vez de caminhar para a objetiva Samet desvia o seu percurso, abre uma porta e sai para logo a seguir atravessar o amplo espaço de um estúdio cinematográfico onde são visíveis os bastidores do cenário. Na altura em que se fazia realçar a verdade do corpo e da alma dos amantes, há um corte que funciona como uma pausa dramática, um link que nos desvia por um caminho alternativo, mais um Ctrl Alt Delete seguido de uma espécie de Reset da narrativa. Entretanto, Samet regressa ao encontro de Nuray e o filme, que nunca deixou de o ser, retoma o seu percurso. Mas nada será como dantes.

Tudo adquire a partir dali uma dimensão que polariza a importância da partilha material, descobrindo-se o corpo e a visão sem filtros do pedaço de perna que falta a Nuray. Mas este desvio faz-se sem abandonar a fugaz ou a persistente partilha espiritual das personagens que, aliás, sai de algum modo reforçada. Tudo ainda para que, mais adiante e por outro corte, a realização nos introduza uma componente mais onírica e filosófica do que realista, que preenche os últimos minutos e ilumina as derradeiras sequências de “As Ervas Secas”. Nesse epílogo solar, ao contrário da neve e do branco sombrio que antes servira de décor natural ao desenrolar das diferentes histórias contra o qual se desenhavam as silhuetas e o destino dos humanos, vemos agora o radioso amarelo que inunda os campos cobertos por uma vegetação rasteira cuja cor quente será desvendada pela fusão da neve quando o Inverno acaba, aquela estação que morre para logo dar lugar ao renascimento do Verão. Desta vez, ao reset da Natureza.

Será pela voz de Samet, cumprido que foi o seu calvário no frio escolar da Anatólia e prestes a viajar para Istambul, que ficaremos a saber como os habitantes daquela região a caracterizam no plano da sua especificidade climática: “Quando vim para cá disseram-me que só existiam duas estações, o Inverno e o Verão. Tinham razão. Entramos directamente no Verão, sem passar pela Primavera. As ervas que durante longos meses estiveram cobertas pelo manto branco da neve parecem agora amarelas sem nunca chegarem a ser verdes”. Desta definição/indefinição do que se vê ou não vê, do que permanece visível/oculto nas contradições da Natureza propriamente dita e nas vicissitudes da natureza humana, do que se vai alcançando e do que permanece inacessível, dialécticas geradas pelo TEMPO e pelo MODO como percecionamos os mistérios do universo que enquadram as nossas vidas num precário equilíbrio cósmico que ilusoriamente julgamos controlar, se faz o núcleo central deste filme.

São as ervas secas que marcam o caminho da nossa existência, as que vivem para além do frio do Inverno e que despontam no calor do Verão, como os sentimentos que irão marcar para sempre as memórias de Samet. Por fim, longe da Anatólia e pacificado consigo mesmo, não deixará de pensar na rapariguinha que procurou estabelecer com ele mais do que uma fugaz relação de amizade entre professor e aluna. Relacionamento contaminado pela aparente impossibilidade de Samet conciliar o seu olhar com o olhar de Sevim, perdidos que estavam na vertigem dos seus diferentes mundos e na fragilidade dos sonhos e das falsas esperanças que ambos alimentaram.

Crítica - Por João Garção Borges

As Ervas Secas (Kuru Otlar Üstüne)

Realizador: Nuri Bilge Ceylan

Elenco: Deniz Celiloglu, Merve Dizdar, Musab Ekici, Ece Bagci

Género: Drama, 2023, 197min

PRÓS: Nuri Bilge Ceylan sempre soube dosear as palavras ditas pelos atores com os ritmos existenciais associados ao desempenho de cada uma das suas personagens. Dito isto, um dos seus pontos fortes encontra-se na direção de atores, e “As Ervas Secas” não constitui excepção. Quando esta qualidade se junta ao elenco escolhido a dedo, dificilmente as coisas falhariam no campo ficcional. Tudo o que pode e deve ser apreciado neste filme justifica plenamente o lugar que o realizador ocupa nos melhores quadrantes do cinema internacional que defende a arte e a afirmação plena de práticas fílmicas inerentes ao exercício criativo de um verdadeiro autor.

Muito boa Direcção de Fotografia, quer nos exteriores quer nos interiores, responsabilidade da dupla Kursat Uresin e Cevahir Sahin.

Magnífica presença dos atores secundários e protagonistas, com especial destaque para Merve Dizdar, no papel de Nuray, que recebeu com inteira justiça o galardão para Melhor Actriz no Festival de Cannes de 2023.

CONTRA: Nada.

(Fonte: Magazine HD)

sábado, 18 de novembro de 2023

Paula Rego: O Banho Turco (1960)

 


1960

Tinta acrílica, grafite e colagem sobre tela (93 cm x 93 cm)

Paula Rego

Turkish Bath [O Banho Turco]

Ara Güler: Um Jogo de Luz e Sombra

Esteve patente em Amesterdão uma exposição da vasta e icónica obra fotográfica de Ara Güler (23 de junho-8 de novembro, Museu de Fotografia Foam). 



segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Pera Lisboa: uma nova casa para artistas e não só


Elif e Burak viajaram de Istambul para Lisboa, onde criaram o próprio projecto: um espaço que inclui uma loja, exposições e até um bar. A inauguração está marcada para a próxima quarta-feira.

Elif é designer de jóias, Burak é artista. Estão casados há três anos. Há um ano e meio, fizeram as malas, deixaram Istambul e vieram viver para Lisboa. Cá, nasceu o sonho de conceber um projecto a dois – a Pera Lisboa. Uma casa que é simultaneamente loja, bar, galeria de exposições e espaço de cowork. Acima de tudo, quer ser um ponto de encontro.

“Nunca imaginámos abrir uma loja assim, mas agora é o nosso sonho”, começa por contar Elif. No número 65 da Rua Fernandes Tomás, o espaço do casal turco suscita curiosidade a quem passa. Quando a Time Out bateu à porta, o letreiro ainda não identificava a fachada. Ainda assim, entraram vizinhos e amigos, que não resistiram a dois dedos de conversa. “É toda a gente muito simpática e isso é algo que não esperava”, realça Burak.

Na altura de mudar de cidade, não houve dúvidas que a nova casa seria Lisboa. “Na minha opinião, Portugal é dos países mais tolerantes da Europa, tínhamos medo de vir para um país em que as pessoas tivessem a mente fechada”, explica Burak. Apesar da distância entre Lisboa e Istambul, o casal vê semelhanças entre os dois lugares. Ele vê em Lisboa as partes boas de Istambul, ela adora a mística da cidade. O bom tempo também conquistou o casal, que começou a ter aulas de surf. “Se a loja não estiver aberta é porque estamos a fazer surf”, brinca Elif. 

Neste antigo atelier de pintura, o chão é de pedra, as paredes brancas, e os dois arcos no centro conferem um carácter interessante à arquitectura do espaço. Na parte da frente, fica a loja. Há quimonos da Rasasvada, marca que vive também ela entre Istambul e Lisboa, chapéus mexicanos feitos à mão, malas de pano reciclado da Mah-roc, peças de azulejaria e ainda pigmentos naturais da marca do Burak.

Uma cortina de franjas azul separa a zona de trabalho dos proprietários. O mobiliário é, na sua maioria, vintage. Actualmente, o espaço tem ainda um bar, em madeira escura, da década de 70, vindo directamente do Porto. Do tecto, pende um candelabro, herdado do avô de Elif. “Quero sentir-me em casa”, confessa a designer. O nome do espaço também vai buscar inspiração às raízes turcas de Elif e Burak. Pera, actual Beyoğlu, em Istambul, é o município onde o casal cresceu.   

O espaço está pensado para ser um pouco de tudo mas, sobretudo, para ser utilizado "para fins criativos”. Além de ser uma loja, há planos para começar a receber exposições e workshops, alguns de design de joalharia, dados pela própria Elif, que também expõe aqui peças da sua marca, ExNihilo, à venda na loja. Também haverá eventos de tatuagens e de design 3D. O bar não funciona como paragem nocturna, mas sim como um lugar onde o casal pode receber amigos, sempre que quiserem. “Neste mundo profissional queremos assumir um perfil descontraído, as pessoas podem vir aqui, falar livremente, usar o espaço” e “queremos criar uma comunidade chegada, conectar-nos com os outros, e também explorar coisas diferentes. Não quero fazer apenas joalharia, quero aprender com as pessoas”, explica Elif.

A 15 de Novembro, a par com a abertura do espaço, marcada para as 18.00, inaugura a exposição "Dreams have no titles". Conta com obras de oito artistas internacionais e fica patente até 30 de Dezembro. A Pera Lisboa quer ser uma residência independente, onde a arte é criada com técnicas ancestrais e apresentada numa era moderna.

Rua Fernandes Tomás, 65 (Cais do Sodré). Qui-Seg 11.00-20.00

(Fonte: Time Out)



sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Orhan Pamuk: "Eu pertenço à língua turca"

Embora não o pareça, “Noites de Peste” é um livro sobre a repressão. Sobre o aproveitamento político de uma quarentena numa ilha fictícia que poderia ser a Turquia de outrora se não fosse a de hoje. A ambas pertence o escritor que em 2006 recebeu o Nobel da Literatura.

Ainda escreve dez horas por dia e é nesse ritmo que, aos 71 anos, está a trabalhar num romance autobiográfico sobre a sua adolescência em Istambul, a cidade à qual pertence, na língua que é a sua. Assim culmina esta conversa com Orhan Pamuk — com a afirmação: “Eu pertenço à língua turca.” Não devemos admirar-nos. Desde os 20 anos que o Nobel da Literatura em 2006 e filho de um Império Otomano em declínio se dedica a retratar o seu país, a dissecá-lo, a recriá-lo com a imaginação e com as garras que, por vezes, a escrita deve ter. Agora, em “Noites de Peste” (Presença, editora portuguesa do autor), um gigante de mais de 600 páginas que levou três décadas a gestar-se, analisa a ascensão do nacionalismo num ilha fictícia assolada pela terceira peste pandémica, em 1901. Um livro tão realista como alegórico do presente numa Turquia “cada vez mais cruel e autoritária”. É a partir dela e das suas contradições — políticas, geográficas — que conversou com o Expresso.

Este livro é uma ideia antiga. Em “A Casa do Silêncio” já tinha abordado o tema da epidemia. Porquê dedicar-lhe um romance inteiro?

Nesse livro dos anos 80 havia uma personagem que era um historiador otomano a pesquisar sobre a peste. Mas fiquei com vontade de escrever um romance que se passasse inteiramente durante uma epidemia. Porque as epidemias, em especial as dos tempos medievais, são grandes focos de drama humano e histórico. Esta ideia estava presente em “A Casa do Silêncio”, onde quis que as personagens refletissem sobre como a nossa individualidade e as nossas ideias se desenvolvem quando somos confrontados com a morte, quando ela está perto e é palpável.

Além da morte, que outras noções estão em causa numa epidemia?

As pestes medievais ocorreram muito antes de, em meados do século XIX, a Humanidade descobrir as bactérias e, depois, as vacinas. Por isso, a morte por peste estava num plano mais metafísico, porque a Humanidade não compreendia de onde provinha a doença. As pessoas iam logo ter à ideia de Deus. Pensavam que Deus as estava a castigar. Na Turquia, mesmo em pleno século XXI, houve quem acreditasse que a pandemia de coronavírus era uma punição de Deus e, portanto, algo de inevitável. De repente, as pessoas começam a morrer e só se consegue pensar em salvar-nos e em salvar a família e os amigos. Por outro lado, já nos tempos medievais se sabia o que era uma quarentena — o isolamento dos doentes. A quarentena significa que um Governo, qualquer um, imporá regras severas e até cruéis. Talvez esta seja a razão por que há seis anos decidi finalmente escrever um romance sobre a peste: porque o Governo turco, o Governo de Erdogan, está a tornar-se cada vez mais cruel, severo e autoritário. Então pensei em construir um romance realista que fosse também uma alegoria sobre os dias de hoje.

É interessante que estivesse a escrever sobre uma pandemia quando a de coronavírus aconteceu. Isso influenciou o rumo do romance?

Sim, foi uma imensa coincidência. Mas, sabe, sou um escritor lento, em especial se o romance tiver um carácter histórico. Os meus amigos diziam: “Quem vai ler este romance esotérico e bizarro sobre a peste, que decorre há 120 anos?” E, de repente, aquelas coisas sobre as quais eu estava a pesquisar — a quarentena, o distanciamento social, o confinamento — começaram a invadir os jornais de todo o mundo.

Tornou-se a nossa realidade.

No início foi um choque. Esses mesmos amigos ligavam-me para dizer: “Tens tanta sorte!” Porque esta não é a minha primeira coincidência: quando estava a escrever o livro “Neve”, sobre o Islão político, aconteceu o 11 de Setembro. Mas a questão da ‘sorte’ é muito relativa. Os meus tios, que viviam a dois quarteirões daqui, foram das primeiras vítimas mortais do coronavírus em Istambul. Na altura, muita gente me perguntou sobre como me sentia a escrever em confinamento. Digo sempre que, enquanto escritor, vivo confinado há 48 anos. Para escrever romances é preciso viver numa espécie de quarentena.

Que importância teve para si a restante literatura sobre epidemias, autores como Defoe ou Camus?

Diria que foram clássicos essenciais. De Daniel Defoe, temos o “Diário do Ano da Peste” [PIM Edições], de 1722. E há também “The Bethroted”, do italiano Alessandro Manzoni. Albert Camus, por sua vez, com “A Peste” [Livros do Brasil], não estava interessado na quarentena e nas suas regras. Abordei o assunto nas minhas aulas de literatura comparada na Universidade de Columbia, não da perspetiva epidémica, mas política. Se em vez de ‘peste’ escrevermos ‘nazis’, o resultado é o mesmo. É um romance moral, menos sobre realismo e comportamento humano, do que sobre atitudes como a defesa, a solidariedade, o pânico ou a cobardia. De qualquer modo, a mim interessava-me a quarentena e encontrei muitas histórias e teses escritas sobre o tema. Preocupava-me que os leitores pensassem que escrevi o livro após o coronavírus, para aproveitar o sucesso comercial. Por isso publiquei um longo ensaio no “New York Times”, a explicar que não ‘cozinhei’ este livro enorme em cinco minutos. A reação dos editores foi perguntar logo quando é que estaria pronto. Subitamente, o meu romance estava na ordem do dia.

Decorre numa ilha fictícia, Minguer, no Mar Egeu. Que lugar é este?

Se as epidemias concentram uma grande dose de drama, isso também acontece com o isolamento. O meu livro “Neve” [2002] está situado numa cidade isolada do resto da Turquia, pelo que a história progride mais depressa. O mesmo vemos na “Montanha Mágica”, de Thomas Mann. Gosto, por exemplo, de situações em que um avião está a atravessar a Amazónia e se despenha, e os passageiros fazem coisas estranhas como devorarem-se uns aos outros, matarem-se ou inventarem um novo regime político. Portanto, era importante criar um ambiente deste tipo. Queria explorar as origens do nacionalismo e precisava de um lugar onde este se pudesse desenvolver. Também me apetecia acrescentar ao livro qualquer coisa que ultrapassasse o realismo. Tinha uma história panorâmica sobre o declínio do Império Otomano, e isso era demasiado pesado, demasiado duro. Precisava de uma aura de doce artificialidade. A minha ilha é bonita, tem um tom de conto de fadas, lembra “As Viagens de Gulliver”, de [Jonathan] Swift. Ou, de novo Daniel Defoe, que além de ter escrito o melhor livro sobre uma epidemia também escreveu o melhor livro sobre uma ilha, chamado “Robinson Crusoé”. Ele é o meu herói, escreveu as melhores obras sobre as temáticas que mais me interessam.

Numa entrevista recente disse que o livro é nostálgico. Porquê?

É nostálgico da cultura da última década do Império Otomano. Quando eu era criança, há 60 anos, a casa da minha avó estava cheia de fotografias e retratos de doutores, paxás e burocratas desse período, que aparecem no meu romance. É esse tipo de nostalgia, pela vida diária de um império em decadência. E é também uma tentativa de homenagear os burocratas em cujas mãos o Império se desfez e desapareceu. A sua civilidade e cultura, o seu desânimo. A sua dedicação. Perto do final, há uma cena em que todos são colocados num barco e mandados de volta a Istambul. Não se trata propriamente de uma homenagem ao Império Otomano em si, mas de tentar compreender as pessoas que o conduziram à extinção.

Podemos dizer que a geografia do livro é antieurocentrista?

Nos grandes romances há sempre grandes cidades. Em Dostoiévski e em Tolstoi estamos em São Petersburgo e em Moscovo. Na maioria dos romances clássicos estamos em Paris, em Londres ou em Berlim. Por vezes, em Milão. Ora, as cidades do meu livro estão centenas de quilómetros a sul dos centros urbanos do tempo em que o romance foi inventado, ou seja, Londres e Paris — porque foram Dickens e Balzac que inventaram o romance como tal. Agora estamos fora da Europa, de Xangai a Minguer, passando por Bombaim, a analisar a migração de micróbios de leste para oeste a partir da descoberta da peste, que aconteceu em Xangai. A história decorre naquela que é conhecida como a terceira peste pandémica, que começou em 1897 e continuou até meados de 1920, e na qual morreram 20 milhões de pessoas na Ásia, sobretudo na China. O romance não está centrado na Europa porque na Europa morreu muito pouca gente. E porquê? Bom, os europeus eram mais educados e mais recetivos aos argumentos da quarentena, enquanto noutras partes do mundo — pelo colonialismo ou por ignorância — as pessoas não paravam de morrer e isso não era sequer conhecido no Ocidente.

Depois de publicar o livro, foi levado a tribunal por desrespeito a Kemal Atatürk. Sob que argumentos?

Deixe-me esclarecer que o processo não está concluído. Simplificando, uma parte do Governo quer processar-me e a outra não. Agora estamos numa espécie de limbo: o meu dossier foi enviado de volta para Ancara e desapareceu no labirinto da burocracia judicial turca. O que aconteceu é que me acusaram de fazer uma correspondência entre o fundador da fictícia República da Minguéria, uma das figuras principais do romance, e Kemal Atatürk. Como se ambos fossem a mesma pessoa. Na verdade, a minha personagem não é Atatürk, e existem elementos claros que os separam. Por exemplo, ele gostava de bebidas alcoólicas e a minha personagem não, além de não se lhe parecer fisicamente. Mas que importa? Há uma péssima tradição no sistema legal turco: basta alguém escrever algo polémico e o procurador abre uma investigação. Sob o seguinte argumento: “Se ele não for culpado, vai defender-se e nada vai acontecer.” É isso que se passou, ou seja, nada. Apenas notícias nos jornais. Durante um tempo tive medo, não de acabar na cadeia, mas de o livro ser banido. Porque estes casos acabam sempre por se tornar políticos.

A dada altura, contou que começou a perguntar ao procurador: “Em que página leu isso?” E ele não sabia dizer. Só esta cena dava um livro.

Perante uma acusação, esta gente não se preocupa em saber se é ou não válida. Não lê o livro, apenas dá início ao processo judicial. Então, é preciso ir com calma e agirmos como se eles o tivessem lido. Felizmente, o livro tem vendido bem, tudo está bem e agora estou aqui a falar consigo. Às vezes dá-me vontade de explicar aos procuradores: “O que vai conseguir é tornar o livro mais popular.”

Falemos sobre a quantidade de pessoas que, no seu país, são presas por dizer o que o regime de Erdogan não quer ouvir.

Muitas, muitas. Não sei com exatidão, teria de perguntar às organizações de direitos humanos. Sou um privilegiado, sou famoso, escrevo os meus romances, digo mais ou menos o que me apetece. Corajosos são os jornalistas turcos que criticam Erdogan e enfrentam processos por dizer em público o que não ‘deviam’ sobre o genocídio arménio ou sobre o que fazem aos curdos. São postos logo na cadeia. Há pessoas detidas por insultar Erdogan. Algumas talvez preencham os critérios, mas a maio­ria está presa apenas por criticar. Veja casos proeminentes como o de Osman Kavala [ativista sentenciado a prisão perpétua em 2022]. A Turquia não tem liberdade de expressão. Temos uma democracia eleitoral, muito limitada. Erdogan pune qualquer pessoa com a mínima chance de se transformar num verdadeiro opositor e ganhar uma eleição. Ele processa-o e impede-o de sequer concorrer.

Já foi perseguido, teve livros queimados na praça pública e foi o primeiro escritor do mundo islâmico a condenar a fatwa contra Salman Rushdie. Como se lida com estas situações?

Bom, a minha mulher está sempre a insistir: “Deixa-me ver o que disseste.” Vivemos uma vida nestes moldes, não sou um super-homem a combater o inimigo da direita fascista. Tenho cuidado. Se estou vivo e a falar consigo é porque, às vezes, tive de ficar calado, de me impor silêncio. Sou o vice-presidente do International PEN e defendemos a liberdade de expressão. Mas confesso que nem sempre sou livre de me expressar. Tenho sobrevivido porque sou ‘famoso’ e porque tenho cuidado. Posso até ser corajoso, mas há limites.

É uma gestão?

É um saber navegar entre perigos. A minha mulher avisa-me: “Disseste isto a semana passada, não o digas de novo.” Nos últimos 20 anos esta tem sido a minha vida e graças a Deus sobrevivi, porque quando o Governo não consegue silenciar alguém pela via legal, usa outros métodos, como o assassínio. Por outro lado, ironia das ironias, há 17 anos que vivo com guarda-costas contratados pelo próprio Governo. Metade do Governo persegue-me, a outra metade dá-me guarda-costas. Costumo fazer uma piada com isso: antes precisava de três, agora só preciso de um. É um progresso, estamos a melhorar.

Já li esta observação, mas é bom ouvi-la de si diretamente.

É bom rir-se. A única forma de sobreviver é através do humor.

O mundo ainda se sente ameaçado pela palavra escrita. Porquê?

A palavra escrita não é perigosa, mas há grupos radicais que abusam dela com a sua interpretação, tornando-nos os seus alvos. Há tabus. Mas se ninguém tivesse reagido aos “Versículos Satânicos” de Salman Rushdie, o livro teria sido esquecido e não teria mudado nada no mundo. De facto, os fanáticos radicais e os governos repressivos agigantam as coisas — se Salman tivesse escrito uma simples fantasia, eles tê-la-iam exagerado. O dilema dos escritores é: dou um passo atrás quando as coisas adquirem proporções exageradas ou, pelo contrário, mantenho-me firme na minha posição? Salman fez isto, é um homem corajoso. Escrevi muito sobre o ataque de que foi vítima. Haverá sempre gente autoritária que quer punir, obter vantagens ou fazer política por meio da ameaça e da morte. Isto vai continuar. Veja o que está a acontecer entre Israel e o Hamas. A situação dos escritores é insignificante ao lado disso.

Qual é a sua visão desta guerra?

A Humanidade tornou-se ali verdadeiramente selvagem. Os dois lados estão a comportar-se de um modo deplorável.

Como interpreta a posição da Turquia?

Os turcos seculares e pró-europeus estão especialmente divididos. Porquê? Porque são muçulmanos — pode-se ser muçulmano e secular — e, mesmo que defendam ideais ocidentais, sentem-se mais próximos da dor dos palestinianos. E porque, infelizmente, a chamada Europa civilizada, assim como os Estados Unidos, estão também a desrespeitar os seus ideais. Então, é um tormento. No início, o Governo turco apercebeu-se disto e não tomou partido, apregoando a calma para ambos os lados. Mas de repente, nos últimos dez dias, Erdogan mudou a sua atitude, e agora está abertamente a apoiar o Hamas.

E o que pensa disso?

É algo tão delicado que, para mim, os únicos critérios válidos são a liberdade de expressão, os direitos humanos e os direitos das crianças. E penso que os ataques israelitas são intoleráveis. Confinar estas pessoas a uma espécie de prisão a céu aberto e bombardear, e bombardear — não, isso não é uma guerra. No começo, fui compreensivo em relação a Israel, assim como a maior parte do mundo. E compreendo tanto a dor do povo palestiniano quanto a dos judeus e dos israelitas. Há tantas contradições que não há um modo totalmente justo de falar sobre o tema. Sou também professor na Universidade de Columbia, em Nova Iorque — agora estou em Istambul, a gozar de férias —, e há lá uma espécie de censura, em que as pessoas assinam petições, mas escondem os seus nomes. No campus de Columbia, os estudantes pró-Israel e os árabes já estão a atacar-se uns aos outros. Por outro lado, há muitos judeus que, fora e dentro de Israel, estão a criticar com firmeza Benjamin Netanyahu.

Várias vezes referiu que tenta evitar a política nos seus livros.

Mas este é um livro político. Talvez um dos mais políticos que escrevi, ou aquele em que a política surge mais ligada à vida quotidiana, por se passar em tempos de quarentena. A acusação de que fui alvo vem daí: da interpretação, quanto a mim errada, de que todos os mitos nacionais — a lenda do fundador do meu país, a lenda da nossa bandeira, as histórias sobre os nossos heróis, as imagens nas notas bancárias — surgem no meu livro como falsas e exageradas.

Isto leva-nos a outra crítica feita ao romance, a de ser ‘orientalista’. Concorda?

Não, porque não sou um orientalista. Essa acusação recaiu sobretudo em “O Meu Nome É Vermelho”, onde eu estaria a deturpar o Oriente sob uma perspetiva de dominação. É nisto que assenta, aliás, a ideia de orientalismo de Edward Said. Conheci-o, éramos amigos e foi uma espécie de pai para mim. Na altura, a acusação de orientalismo veio dos apoiantes da direita na Turquia. Embora não concorde com ela, consigo perceber que se critique um ligeiro tom exótico, de conto de fadas, do livro. Mas não me quero defender. Que eu saiba, “Noites de Peste” foi atacado noutro sentido.

Mas carrega com uma certa ideia pitoresca do Oriente.

De facto, um quinto ou um sexto do livro ocupa-se de descrever a elite da realeza otomana, as princesas, os noivos, os sultães. Isso sim, é sumarento, e embora eu o considere altamente realista, pode haver quem o considere orientalista. Da mesma forma, podem-me acusar de retratar esta elite como estúpida, ao que respondo que se trata, antes, de uma descrição realista da aristocracia otomana em declínio. Como se casavam, como viviam, o que faziam, a que aspiravam — sim, presto atenção a estas questões e gosto muito de escrever sobre elas. Não me importa se as qualificarem de orientalistas.

O sultão do romance navega entre o Oriente e o Ocidente. É este o lugar histórico da Turquia — fazer essa conexão?

Nessa altura, em 1901, a Turquia tinha um lugar muito relevante no jogo de forças mundial. Comparativamente, agora é menos importante. O sultão Abdul Hamid, embora fosse uma figura repressiva e reacionária, convidava os médicos mais caros do planeta para os nossos hospitais e tinha uma visão moderna sobre a construção, sobre a engenharia. Hoje, a importância da Turquia reduz-se a ser membro da NATO, não tem nada a ver com a população ou com o poder, ou com a força do seu exército. Isto porque encolheu, passou de império a país.

E o que pensa da forma como se desenhou a relação entre a Turquia e a União Europeia?

Na primeira década deste século, a UE estava muito interessada em promover a entrada da Turquia. Eu ia de país em país a falar dos meus livros e esse era um sentimento claro. Infelizmente, não aconteceu. Em parte, por culpa da própria Turquia e do seu desrespeito pelos direitos humanos, pela situação no Chipre, pela contínua repressão dos curdos. Neste momento, Erdogan está a mostrar-se amigável com Putin, irritando a UE. E, mesmo assim, acalenta o sonho — irrealista — de entrar na Europa. Quando as prisões estão cheias de pessoas que foram presas por criticarem o Governo, não há hipótese de sequer chegar perto desse objetivo.

A Turquia é necessária à UE no que toca à política de imigração.

Sim, mas não se trata de uma necessidade digna. Há duas situações: ou a Turquia tem a necessidade geopolítica de subornar a Europa e a Europa é paciente com isso, ou — o que é mais indigno — a Turquia embolsa dinheiro da UE para travar os migrantes enquanto Erdogan ameaça a UE. “Se me criticares muito, ou se eu sair do Governo, os migrantes passam e envenenam a tua vida.” O Governo turco faz isto sistematicamente. Diz que está ao serviço da Europa, servindo de tampão à imigração, e num sentido a Europa está muito contente com Erdogan.

Mas, deste modo, a Europa torna-se cúmplice da Turquia.

Sim. A UE e Erdogan partilham um grande pecado. Ninguém na Europa quer imigrantes. Nas últimas eleições, o candidato da oposição defendia que a Turquia deixasse de ter este papel. Claro que não era muito popular na Europa e não recebeu o seu apoio. Lamentavelmente, Erdogan foi reeleito.

O que pensa dos que afirmam que Erdogan está a construir um ‘neo-otomanismo’?

Há nisso alguma verdade. Celebrámos há dias o centésimo aniversário da República da Turquia. Ou seja, há 100 anos que somos uma república moderna, supostamente secular e pró-europeia. Essa Turquia moderna não respeitava o Império Otomano — nos meus manuais escolares, por exemplo, os otomanos não eram representados como retrógrados, pré-modernos e não suficientemente europeus. Erdogan modificou essa retórica. Disse às pessoas que os otomanos eram bons, e isso levou a imprensa ocidental a falar de ‘otomanismo’. Porém, o próprio Erdogan sabe que o ‘otomanismo’ não é uma realidade — pelo menos enquanto a Turquia estiver a implorar por mais aviões aos Estados Unidos.

Há uma romantização do Império perdido?

Totalmente, é uma ideia romântica. Os meus primeiros livros foram romances históricos que abordavam os tempos otomanos. Ora, há 40 anos ninguém fazia isto. Hoje as coisas mudaram e fico feliz por isso. Os otomanos não eram inteiramente maus ou inteiramente bons. É um pouco mais complexo.

Sente-se otimista quanto ao futuro do seu país?

Por vezes. Tenho os meus momentos. Penso que as ideias de liberdade e os valores europeus, assim como o respeito pelos direitos das mulheres, irão chegar inevitavelmente à Turquia, mais tarde ou mais cedo. Como esquerdista liberal e ingénuo que sou, ainda acredito que vamos fazer parte da UE, embora não nos próximos 20 anos. Quanto mais rico for um país, mais é provável que desenvolva essa exigência de respeito pelas minorias. Mas também sou pessimista, porque, como já aqui referi, a importância da Turquia diminuiu. Só é importante para evitar que os imigrantes asiáticos e africanos ingressem na Europa. E quanto mais imigrantes ingressarem na Turquia, mais difícil será para a UE ‘engolir’ que a Turquia faça parte dela. Estas são as contradições do presente, que desfocam e obscurecem o futuro do país.

Pode falar da noção de pertença a um país? De como Orhan Pamuk pertence à Turquia?

Pertencer é ser-se o que se é num espaço, num lugar, num tempo, numa geografia que se quer defender. Mas mais do que a geografia turca ou a população turca, o que me apetece defender é a língua turca. Eu pertenço à língua turca e, nesse sentido, sou um conservador. Não quero que a minha língua se modifique demasia­do, em termos de léxico e de regras. Os turcos vieram da China ocidental — os uigures, hoje severamente perseguidos, são os nossos tetravós. Durante dois mil anos, este povo caminhou para oeste. Tudo neles — os olhos, as feições — era asiático. Hoje, os turcos são mais ou menos como eu. A sua cultura e costumes mudaram. Na linguagem, mudaram os verbos e grande parte do léxico, ainda que haja palavras (como ‘água’) que permaneceram iguais. O que não se alterou é a estrutura da língua. A linguagem uigure e a turca partilham a mesma estrutura. Quando falo da identidade turca, falo da linguagem, e não quero que o dicionário integre termos europeus, americanos ou informáticos. Há 40 anos, o francês travou uma guerra contra a colonização do inglês. Eu pertenço à língua turca.

Ainda escreve dez horas por dia?

Sim. Claro que vou envelhecendo, mas escrever continua a fazer-me feliz, tal como quando tinha 20 anos e estava a trabalhar no meu primeiro romance. Com Albert Camus e Jean-Paul Sartre, penso que a vida diária é aborrecida. O interessante é viver na imaginação, na fantasia. Fiz a opção de viver assim e tive a sorte de conseguir impor-me como escritor profissional. Passo o tempo a imaginar como uma criança e a escrever como um adulto. E a ganhar dinheiro com isso. Que mais posso pedir?

Está a escrever um novo romance?

Estou, comecei há dois anos e interrompi. E nos últimos meses voltei ao trabalho. É um romance sobre a minha adolescência em Istambul. Tem corrido bem e tenho escrito dez horas por dia. Não há nada mais que possa fazer, além de dar entrevistas e responder a perguntas políticas! Não sei quando irei acabar. Se os meus amigos me perguntam isso e eu digo: “Em quatro meses”, eles contrapõem: “Então, vai demorar 40 anos.” Não confiam em mim, e fazem bem.

(Fonte: Expresso)

domingo, 29 de outubro de 2023

Ara Güler: o olhar demorado


A partir de 1950 e ao longo de mais de 70 anos, Ara Güler (1928-2018) tornou-se um fotógrafo mítico, cujo génio forjou o imaginário da Turquia moderna. 

Dias depois da inauguração em Istambul do museu com o seu nome (tendo-se implicado ativamente na organização do espólio), Ara Güler morreu aos 90 anos, deixando uma vasta obra fotográfica que testemunha a cadeia de transformações sociais instaurada com a república de Mustafa Kemal Atatürk em 1923, a resistência popular diante da voragem do progresso e as revoluções militares na década de 60 — um compêndio ilustrado da transmissão dos saberes quotidianos sob a fúria dos regimes.

(Fonte: Público)