quarta-feira, 30 de março de 2011

Mel turco...



"Leite" (Süt), de Semih Kaplanoğlu, o primeiro filme da trilogia de Yusuf, que também se poderia chamar a trilogia dos alimentos, retratava os tempos em que Yusuf era estudante universitário. "Ovo" (Yumurta), levava-nos à sua idade adulta. Em "Mel" (Bal), deparamo-nos com a sua infância. O realizador turco termina a trilogia pelo início (diz que toda a trilogia é um imenso "flashback"), e "Mel" começa pelo fim, o que pode desiludir aqueles que dão demasiada importância à emoção dos desfechos. A ideia aqui talvez seja mesmo essa, tirar parte desse tipo de emoção narrativa, ou do suspense, e tornar o filme mais contemplativo. Contudo, e não casualmente, a cena da morte do pai é dada de modo quase burlesca. O apicultor cai da árvore, mas ainda se mantém preso por uma corda, mas é notável forma como o seu corpo se mantém estático e hirto, paralelo ao chão, mas ainda a uma altura considerável, como se levitasse, e a sua própria expressão facial não é de pânico nem resignação, mas de quem se depara com uma equação impossível de resolver. Diga-se que é uma opção estanha e ousada para um filme do género, mas é também essa desdramatização, apesar de tudo equívoca, que permite que o filme mantenha o tom contemplativo, em vez de exacerbar o seu lado trágico. Todo o filme caminha para o seu princípio, amargo e doce, como uma contradição à volta da ideia do próprio mel e da profissão de apicultor, mostrada como fascinante e perigosa. Os olhos são sempre os da criança, mas com qualidades atípicas, que o afasta do que se pode esperar de um psicodrama infantil. Há um mundo que o próprio realizador desenha, dentro de uma Turquia rural muito peculiar. E nesse mundo cria três espaços bem definidos: a casa, a floresta e a escola. Yusuf é uma criança solitária que vive num mundo solitário. Nunca o vemos a brincar com outra criança. A sua casa é isolada, onde se mostra sobretudo a relação com o pai, feita de silêncios e murmúrios. Yusuf gagueja quando fala alto, por isso o pai opta por conversar em sussurros. Com a mão, apesar de nunca haver qualquer tipo de agressividade, a relação não é tão fluida, parece que se perdem os códigos. Na escola, há um terror silencioso. As crianças estão a aprender a ler. Os alunos vão recebendo um crachá quando conseguem alcançar o objectivo. O boião vai ficando vazio e ele nunca consegue. A interacção é escassa, os laços débeis, e a incapacidade de entrar naquele mundo, no mundo da escola, que é também a civilização e o mundo alfabetizado. Mas o espaço mais ambíguo e interessante é a própria floresta. É um cenário de transição e encontro em que tudo pode acontecer. Um mundo fora do mundo. Por um lado, espelha a felicidade dos momentos passados com o pai a tratar das colmeias, por outro é uma travessia sombria sempre necessária para chegar à civilização. Mas para Yusuf, a floresta também é simplesmente um refúgio, um não-mundo que só ele compreende, em toda a sua imensidão misteriosa. "Mel", que valeu o Urso de Ouro a Semih Kaplanoğlu, é uma obra de extrema beleza, com óptima fotografia, e uma interpretação notável do menino Bora Atlas. Mostra-se um outro lado do cinema turco: rural, imagético, contemplativo.



(Fonte: Visão)

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