sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

"A Vida Nova" de Orhan Pamuk


Até que ponto a leitura de um livro pode mudar uma vida? Este é o ponto de partida de "A Vida Nova", terceiro romance do escritor turco Orhan Pamuk agora editado em Portugal pela Presença. Realismo mágico, grotesco e ironia com a assinatura do Nobel de 2006. 

Ao percorrer o conjunto de entrevistas, biografias e artigos publicados na imprensa internacional sobre o mais recente Nobel da Literatura há um detalhe que se destaca, se repete, e que, no percurso criativo do mais famoso dos escritores turcos, representa muito mais do que curiosidade: a vista da janela da sua penthouse sobre Istambul. A cidade-ponte entre Oriente e Ocidente é a grande personagem e a metáfora do universo literário de Orhan Pamuk. Quem melhor resumiu essa janela e a sua simbologia foi Salman Rushdie. "A sala de trabalho do escritor Orhan Pamuk tem vista para o Bósforo, essa lendária faixa de água que, conforme o ponto de vista, separa ou une – ou talvez separe e una – os mundos da Europa e da Ásia. Não pode haver cenário mais apropriado para um escritor cujo trabalho faz praticamente o mesmo." Da janela de Pamuk avista-se o mar de Mármara e o Corno de Oiro, o Palácio Topkapı, o Bósforo e a tal ponte que aproxima as duas margens (Este e Oeste), exactamente como faz o escritor nos seus livros ao cruzar nas mesmas páginas as duas culturas. Foi dessa janela que ele sempre viu o mundo, num edifício, a que chamam "Apartamentos Pamuk", uma construção da família. Cada um dos seus cinco pisos era habitado por familiares do Nobel. Foi lá que ele cresceu; é lá que ainda vive e é com essa vista que escreve e escreveu cada um dos seus romances, onde se destacam "Cidadela Branca" (1985); "O Jardim da Memória" (1990); "A Vida Nova" (1994); "O Meu Nome é Vermelho" (2000) e "Neve" (2004). A estes títulos, acresce Istambul: Memórias e Cidade (2005) ainda sem edição em Português. 

Após editar em Portugal os dois primeiros títulos, a "Presença" segue a ordem cronológica da obra de Pamuk e acaba de publicar "A Vida Nova" (traduzido do Francês por Filipe Guerra), um romance sobre a perseguição do amor e da beleza e que é, simultaneamente, uma viagem pela Turquia tradicional e moderna, retrato grotesco e mágico de um país em transformação. Quando foi publicado, em 1994, "A Vida Nova" foi o maior "best-seller" de sempre naquele país (200 mil exemplares vendidos em poucos meses). Mas a popularidade de Orhan Pamuk só viria a ganhar uma dimensão internacional à altura muito tempo depois, em 2005, e não tanto graças à difusão da sua obra – traduzida em mais de 40 idiomas –, mas sobretudo devido a um "escândalo" político que o levou a tribunal acusado de insulto ao Estado turco. Na génese mediática provocada pela ira ultranacionalista estiveram declarações de Pamuk ao jornal suíço "Tages Anzeiger". Numa entrevista publicada a 6 de Fevereiro de 2005, acusou a Turquia do genocídio arménio durante a Primeira Guerra. "Trinta mil e um milhão de Arménios foram mortos nas suas terras e ninguém além de mim se atreve a falar disso,” disse então. A frase, mas sobretudo a palavra "genocídio”, valeu-lhe a acusação pelo Ministério Público "de ter depreciado notoriamente o espírito turco”, podendo incorrer numa pena de três anos de prisão. O nome de Orhan Pamuk saía do círculo fechado dos admiradores de literatura. Alvo de censura, “perseguido” num país que queria aderir à União Europeia e assinara a Convenção dos Direitos Humanos mas que aplicava uma lei contrária aos princípios internacionais –, como lembrava ainda Rushdie -, o escritor ganhou estatuto de personalidade internacional. Pamuk não foi condenado. O julgamento seria anulado numa altura em que o seu nome já constava da lista de favoritos a vencer o Nobel da Literatura. Não ganhou em 2005, ganharia em 2006. Falou-se de um prémio político com mensagem óbvia em tempo de tensão entre os dois lados do Bósforo, o rio de Pamuk. Mas não se ouviram vozes a questionar o mérito literário do autor de "A Vida Nova" que, no dia em que ganhava o Nobel, voltava a sublinhar a que é a sua grande marca criativa: "A imagem do Oriente e do Ocidente em choque é uma das ideias mais perigosas dos últimos tempos." Disse ainda que o seu trabalho era "o melhor exemplo de quanto pode ser frutífero o intercâmbio de culturas.° A introspecção de Osman Escritor político? Ele diz-se apenas escritor, apesar da política estar em todas as suas obras. Mesmo quando se limita a descrever a melancolia de Istambul – onde nasceu há 54 anos –, nas páginas de "A Vida Nova". Essa melancolia – ou "hüzün" em Turco – está nos percursos citadinos do protagonista, narrador introspectivo que outro escritor, o norte-americano John Updike, comparou a Proust. O caminho que Pamuk narra é o de um jovem universitário de 22 anos, Osman, a quem morreu o pai e que vive com a mãe, mulher solitária que mata serões em frente à televisão. Ele? Leu um livro e a partir dessa leitura mudou a vida. "Um dia li um livro e toda a minha vida mudou" São as primeiras palavras de "A Vida Nova". A editora transformou-as em "slogan" de campanha de promoção do romance e, em 1994, a frase correu as livrarias do país de Pamuk, o mesmo país que Osman percorreu após essa leitura obsessiva que mudou a sua visão do mundo. "O meu universo de outrora rodeava-me por todos os lados, em todas as ruas: as montras das familiares mercearias, as luzes ainda acesas na padaria da Praça da Estação de Erenköy, as caixas diante do lugar da fruta e dos legumes, as carroças, a pastelaria "A Vida", os camiões desengonçados, os toldos e as caras sombrias e cansadas. Mas uma parte do meu coração – a parte em que trazia o livro, como quem dissimula um pecado - já sentia apenas indiferença por todas estas sombras que tremelicavam nas luzes nocturnas. Queria fugir de todas estas ruas familiares, da melancolia das árvores molhadas pela chuva, das letras néon que se reflectiam nos charcos de água do asfalto e dos passeios, das luzes do talho e da mercearia. Soprou um vento ligeiro, caíram gotas de água das árvores, ouvi um estrondo e decidi que o livro era um mistério que me estava destinado." A perseguição e a história Osman lê e relê esse livro-mistério, transcreve-o, transforma-o na sua razão de vida e por ele abandona todas as suas rotinas, deixa a universidade, sai de casa. E não esquece a rapariga que viu um dia a ler esse livro e o levou a imitá-la na leitura. Ela chama-se Canan é estudante de arquitectura, namorada de Mehmet, o primeiro dos três a ler o conteúdo desse volume que tem o poder de mudar a existência de quem o decifra. O mesmo Mehmet que Osman julga ver morrer assassinado e que Canan irá procurar por toda a parte. O mesmo Mehmet que disse a Canan: "Disse Mehmet a Canan:"... nas terras descobertas à luz do livro, rondavam sem parar a morte, o amor e o terror, sob o aspecto de personagens desesperadas, de pistola à cinta, semelhantes a fantasmas." Osman ama Canan que ama Mehmet e quem ama chama ao amado "Anjo", assim, com maiúscula, ente mágico com uma carga quase sobrenatural atribuída por um livro que tem um poder de conversão que se assemelha ao religioso. Imperativo de mudança de vida, viagem interior paralela a uma outra, pelas estradas da Turquia, quase sempre de autocarro. É essa a janela a partir da qual Osman vê o mundo, as suas imagens, indo de cidade em cidade. Autocarros com um televisor "instalado por cima do assento do motorista", rodeados de naperons e a passar filmes americanos onde a cada beijo se faz silêncio em todos os bancos, "pouco importava o tipo de passageiros, podia tratar-se de camponeses carregados de cestas de ovos ou de funcionários com malas de executivo”. Osman segue sozinho ou ao lado de Canan, parceiros na busca dessa verdade, ladrões de vítimas de acidentes para sobreviver nessa caminhada. "Porque é que se pensa com palavras, mas se sofre por causa das imagens?", indagará. Perseguem o amor e os segredos que o livro encerra, seguindo sem destino predeterminado por um país em transformação num tempo que podem ser os anos 70 ou 80 do século XX. Numa cidade do interior – Güdül – alguém discursa contra a América e os Americanos. "Quais são as suas intenções? Insultar tudo o que é sagrado aos olhos da nossa cidade, desde há séculos profundamente arreigado – com as suas mesquitas, os seus mescid e as suas festas religiosas – à nossa religião e ao profeta, aos cheques e ao monumento de Atatürk! Não, recusamo-nos a beber vinho, não, jamais podereis obrigar-nos a engolir Coca-Cola!" E tudo com uma enorme ironia que vai temperando o que no início ameaça ser um livro apenas com os ingredientes do realismo mágico. Não é. Ao longo dos anos, os críticos foram-no comparando a Borges ou a Calvino. Pamuk é Pamuk. Escritor influenciado pela literatura europeia mas perfeitamente marcado pela cultura turca com todas as suas tradições mas tocado pela modernidade. Talvez seja mesmo esse o seu maior traço. Essa releitura actualizada da história a que pertence com a qual ganha uma dimensão universal." Atente-se nas palavras de Osman a Canan: "... Como muitos rapazes da minha idade sabem, o apelo da noite, que serve como substituto do desejo sexual não satisfeito, consiste em um tipo lançar-se pela rua escura na companhia de dois ou três malandros sem esperança, para soltar urros desesperados, para invectivar os transeuntes, em confeccionar bombas destinadas a fazer ir as pessoas pelos ares [...] em perorar a propósito da conspiração internacional que nos condena a levar esta vida miserável. E acho que o palavreado deste género tem o nome de história.” (A viagem de Osman é acima de tudo uma viagem no tempo numa descoberta pessoal. "O que é o tempo? Um acidente! O que é a vida? O tempo. O que é um acidente? Uma vida, uma vida nova!”. ”Estes pensamentos ocorrem-lhe no início dessa que se há-de revelar um longa jornada. Já próximo do fim dirá: "O que é a vida? Um lapso de tempo. O que é o tempo? Um acidente. O que é um acidente? Uma vida. Uma vida nova." (Fonte: Diário de Notícias)

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