"As Ervas Secas" de Nuri Bilgi Ceylan nos cinemas portugueses
Chegou aos cinemas nacionais “As Ervas Secas”, a obra do cineasta Nuri Bilge Ceylan escolhida para representar a Turquia nos Óscares do próximo ano.
Tudo ou nada, parece ser o conceito de vida que caracteriza em larga medida o comportamento daqueles que habitam o perímetro de uma pequena aldeia situada numa zona remota da Península da Anatólia, igualmente conhecida como Ásia Menor, banhada a Norte pelo Mar Negro, a Sul pelo Mar mediterrâneo e a Oeste pelo Mar Egeu, e que corresponde a mais de metade da Turquia.
Não é a primeira vez que o realizador do agora estreado “Kuru Otlar Ustune” (“As Ervas Secas”), Nuri Bilge Ceylan (nascido em Istambul a 26 de Janeiro de 1959), investe numa ficção situada naquele fim-do-mundo para onde alguns dos seus compatriotas são deslocados quase sempre obedecendo a um planeamento burocrático determinado pelo poder central exercido a partir da capital, Ancara.
Basta recordar o vencedor da Palma de Ouro e do Prémio FIPRESCI (Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica) no Festival de Cannes de 2014, o belíssimo “Kis Uykusu” (“Sono de Inverno“), ou o igualmente premiado em Cannes com o Grande Prémio do Júri em 2011, “Bir Zamanlar Anadolu’da” (“Era Uma Vez na Anatólia”), para se constatar a óbvia opção do cineasta, argumentista, fotógrafo e ator por um espaço muito especial do ponto de vista geográfico e simultaneamente do ponto de vista sociológico – universo de contrastes relevante num país dividido entre dois continentes cujas visíveis diferenças condicionam muitas e agrestes vezes o estabelecer de pontes necessárias para se erguer uma réstea que seja de unidade nacional digna desse nome, um diálogo solidário capaz de sustentar a salvaguarda de um futuro que se pode e deve desejar sempre mais radioso.
NUMA TERRA SEM OUTONO NEM PRIMAVERA
Nesta que considero ser, no nosso mercado, a última grande estreia comercial em sala de 2023, iremos acompanhar um professor, Samet (Deniz Celiloglu), e a relação algo próxima e relativamente ambígua que aqui e além estabelece com uma aluna, Sevim (a estreante Ece Bagci), uma adolescente meio inocente meio perversa que nutre por ele uma subliminar e em boa verdade não muito secreta paixão, se considerarmos a atitude que revela nos pequenos grandes sinais de sedução e de aproximação física que de algum modo são o reflexo natural de uma atmosfera de amizade gerada por insinuações e um ou outro indício de atracção mal disfarçado por parte do seu mestre.
Há nesta relação homem adulto/jovem rapariga e no modelo utilizado para a encenar uma nítida vontade por parte da realização de nos manter sempre na expectativa sobre a real natureza dos comportamentos de uma e outra personagem. Facto, aliás, que irá ser dominante na relação de Samet com outras personagens relevantes no interior desta ficção, figuras complexas no desfiar da sua humanidade e que se vão cruzar com Samet de forma bastante incisiva no plano da revelação pessoal, sobretudo num contexto imposto por circunstâncias exteriores que se perfilavam redutoras de uma possível mas atribulada afirmação da sua verdadeira personalidade.
De igual modo, e para reforçar a sensação das barreiras impostas pela realidade política, social e económica onde estes homens e mulheres estão inseridos, cúmplices ou não do panorama cultural e ideológico que domina o pensamento da região, nunca será posto de lado o sentimento geral de que esta comunidade, quer no exterior quer no interior da escola pública, vive na sombra “paternal” das práticas quotidianas que seguramente coincidem com o radical olhar penetrante do pai da Pátria, sob a efígie do patriarca fundador de uma nova era dita moderna, por romper com ancestrais práticas otomanas, o militar e estadista Mustafa Kemal Ataturk (1881-1938), primeiro Presidente da República da Turquia, proclamada a 29 de Outubro de 1923. Mesmo enquanto busto, lá está ele para recordar quem ainda continua a influenciar certos caminhos e preceitos institucionais na Turquia. Mesmo que seja memória viva do passado, há vestígios de uma autoridade pretérita que desemboca nos dias de hoje, similares ao respeitinho pelas normas e regulamentos que irão sobressaltar o percurso mais ou menos rotineiro do professor Samet, assim como de um outro seu colega com quem partilha a casa, Kenan (Musab Ekici).
Tudo porque Sevim e outra colega os acusam de contactos inapropriados que prefiguram aos olhos das autoridades escolares abusos de natureza sexual, naturalmente proibidos, mas nunca comprovados por quem aceitou as ditas acusações sem as confrontar com o respectivo contraditório. Nada de espantar, sobretudo numa escola onde alguns docentes não se furtam a prestar serviço exercendo o papel de esbirros repressores, vasculhando nas malas e secretárias dos discentes aquilo que consideram inadequado, como por exemplo, um isqueiro, um caderno escolar que não corresponda ao modelo oficialmente aprovado e, desgraça das desgraças, um espelho ou uma simples e porventura singela carta de amor. Neste caso, a carta de Sevim que Samet, contra a vontade da jovem, irá confiscar, facto que dará origem ao sobressalto emocional da rapariga e ao consequente acto de denúncia.
Todavia, a relação de Samet com as mulheres não se fica pelo universo da adolescência, e pouco a pouco iremos seguir uma outra e mais importante, melodramaticamente falando, relação adulta com Nuray (excelente prestação da actriz Merve Dizdar), figura da mulher emancipada, submetida a preconceitos que persistem e parecem não se desvanecer com facilidade, mas livre na medida em que subverte alguns dos limites impostos pela sociedade e realidade circundantes. Será ela que irá desafiar Samet, de forma indireta mas calculada, a despertar o fulgor do desejo e a assumir uma relação mais íntima que ao início parecia não ser provável.
Todavia, pouco depois sentimos a relação algo condenada, já que a partir de certa altura Nuray parece deslocar o seu olhar sedutor e a sua preferência para Kenan. E fá-lo literalmente nas barbas de Samet. Parte substancial do filme passa a ser então o jogo de máscaras pontuado por encontros e desencontros de Samet com Nuray, de Samet com Kenan, palavras e discussões mergulhadas na mais diversa subjectividade e também no lado físico e objectivo do amor de uma mulher, mutilada pela explosão de um atentado mas inteira na sua vontade de seguir em frente com a vida que para ela faz sentido, independentemente do que Samet, Kenan ou outros possam pensar.
Tudo bate certo no quadro estrutural de um argumento servido por uma planificação clássica, mesmo quando as coisas não são lineares, até ao momento em que Nuri Bilge Ceylan decide lembrar-nos, através de um expediente da linguagem áudio e visual, que poderíamos apelidar de distanciação brechtiana, que as acções e emoções das personagens e a solidez da sua relação não passam de uma ficção, como a querer dizer-nos: não se deixem levar pela superfície das coisas, olhem antes para o que está por detrás da sensação de verdade, a verdade da mentira. Numa sequência fulcral, Samet abandona o quarto onde já estava escrito nas estrelas o pulsar sexual nascido de uma longa conversa confessional entre ele e Nuray, que os levaria finalmente ao contacto físico e íntimo. Em suma, sexo, ponto final. Tudo começa por um algo intrigante mas compreensível apagar de luzes nas salas contíguas do referido quarto.
Depois de cumprir o pedido de Nuray, em vez de caminhar para a objetiva Samet desvia o seu percurso, abre uma porta e sai para logo a seguir atravessar o amplo espaço de um estúdio cinematográfico onde são visíveis os bastidores do cenário. Na altura em que se fazia realçar a verdade do corpo e da alma dos amantes, há um corte que funciona como uma pausa dramática, um link que nos desvia por um caminho alternativo, mais um Ctrl Alt Delete seguido de uma espécie de Reset da narrativa. Entretanto, Samet regressa ao encontro de Nuray e o filme, que nunca deixou de o ser, retoma o seu percurso. Mas nada será como dantes.
Tudo adquire a partir dali uma dimensão que polariza a importância da partilha material, descobrindo-se o corpo e a visão sem filtros do pedaço de perna que falta a Nuray. Mas este desvio faz-se sem abandonar a fugaz ou a persistente partilha espiritual das personagens que, aliás, sai de algum modo reforçada. Tudo ainda para que, mais adiante e por outro corte, a realização nos introduza uma componente mais onírica e filosófica do que realista, que preenche os últimos minutos e ilumina as derradeiras sequências de “As Ervas Secas”. Nesse epílogo solar, ao contrário da neve e do branco sombrio que antes servira de décor natural ao desenrolar das diferentes histórias contra o qual se desenhavam as silhuetas e o destino dos humanos, vemos agora o radioso amarelo que inunda os campos cobertos por uma vegetação rasteira cuja cor quente será desvendada pela fusão da neve quando o Inverno acaba, aquela estação que morre para logo dar lugar ao renascimento do Verão. Desta vez, ao reset da Natureza.
Será pela voz de Samet, cumprido que foi o seu calvário no frio escolar da Anatólia e prestes a viajar para Istambul, que ficaremos a saber como os habitantes daquela região a caracterizam no plano da sua especificidade climática: “Quando vim para cá disseram-me que só existiam duas estações, o Inverno e o Verão. Tinham razão. Entramos directamente no Verão, sem passar pela Primavera. As ervas que durante longos meses estiveram cobertas pelo manto branco da neve parecem agora amarelas sem nunca chegarem a ser verdes”. Desta definição/indefinição do que se vê ou não vê, do que permanece visível/oculto nas contradições da Natureza propriamente dita e nas vicissitudes da natureza humana, do que se vai alcançando e do que permanece inacessível, dialécticas geradas pelo TEMPO e pelo MODO como percecionamos os mistérios do universo que enquadram as nossas vidas num precário equilíbrio cósmico que ilusoriamente julgamos controlar, se faz o núcleo central deste filme.
São as ervas secas que marcam o caminho da nossa existência, as que vivem para além do frio do Inverno e que despontam no calor do Verão, como os sentimentos que irão marcar para sempre as memórias de Samet. Por fim, longe da Anatólia e pacificado consigo mesmo, não deixará de pensar na rapariguinha que procurou estabelecer com ele mais do que uma fugaz relação de amizade entre professor e aluna. Relacionamento contaminado pela aparente impossibilidade de Samet conciliar o seu olhar com o olhar de Sevim, perdidos que estavam na vertigem dos seus diferentes mundos e na fragilidade dos sonhos e das falsas esperanças que ambos alimentaram.
Crítica - Por João Garção Borges
As Ervas Secas (Kuru Otlar Üstüne)
Realizador: Nuri Bilge Ceylan
Elenco: Deniz Celiloglu, Merve Dizdar, Musab Ekici, Ece Bagci
Género: Drama, 2023, 197min
PRÓS: Nuri Bilge Ceylan sempre soube dosear as palavras ditas pelos atores com os ritmos existenciais associados ao desempenho de cada uma das suas personagens. Dito isto, um dos seus pontos fortes encontra-se na direção de atores, e “As Ervas Secas” não constitui excepção. Quando esta qualidade se junta ao elenco escolhido a dedo, dificilmente as coisas falhariam no campo ficcional. Tudo o que pode e deve ser apreciado neste filme justifica plenamente o lugar que o realizador ocupa nos melhores quadrantes do cinema internacional que defende a arte e a afirmação plena de práticas fílmicas inerentes ao exercício criativo de um verdadeiro autor.
Muito boa Direcção de Fotografia, quer nos exteriores quer nos interiores, responsabilidade da dupla Kursat Uresin e Cevahir Sahin.
Magnífica presença dos atores secundários e protagonistas, com especial destaque para Merve Dizdar, no papel de Nuray, que recebeu com inteira justiça o galardão para Melhor Actriz no Festival de Cannes de 2023.
CONTRA: Nada.
(Fonte: Magazine HD)