sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Terramoto na Turquia por Orhan Pamuk

Em 1999, depois do terramoto de Marmara, que matou mais de 17.000 pessoas, Orhan Pamuk esteve em Yalova, uma das cidades devastadas por esse desastre. Agora, depois de um novo e mais violento sismo na Turquia, o escritor conta a realidade das primeiras horas através dos vídeos que chegam do terreno

TEXTO de ORHAN PAMUK 

A menina de olhos tristes deve ter cerca de 10 ou 12 anos. Mal se mexe enquanto olha para a câmara do telemóvel. Sempre que se move, os seus gestos são lentos e débeis. O homem que está a filmar vê-a e grita entusiasmado e espantado.

“Está alguém aqui! Está alguém aqui!”

Mas não há ninguém ao seu redor, apenas uma luz pesada e o silêncio da neve a cair. Estão algures no sudeste da Turquia, uma região que acaba de ser devastada por dois terramotos de magnitude 7,8 e 7,5.

O homem aproxima-se da rapariga cujo corpo está preso, do peito para baixo, sob um prédio desmoronado. É evidente que eles não se conhecem.

“Tens sede?”, pergunta o homem.

“Estou com frio”, responde a menina. “O meu irmão também está aqui.”

“Consegues-te mexer?”

“Não”, responde sem forças. Mesmo com uma voz enfraquecida, conseguiu finalmente fazer-se ouvir. Mas não há esperança nos seus olhos. Passou meio dia desde que o primeiro terramoto atingiu o país às 4 da manhã. Em breve será noite outra vez.

“Consegues mexer as pernas?”

“É muito difícil”, diz a menina com uma voz fraca, que é difícil de entender. Há uma nova expressão no seu rosto agora, como se estivesse a esconder alguma coisa ou como se estivesse envergonhada por alguma falha pessoal.

A neve que tem caído intermitentemente durante a noite e de manhã desenha lentamente um manto sobre a agonia do terramoto, sobre os mortos e os moribundos, sobre as ruínas de casas com dois ou três andares e prédios com 15 ou 16 andares que desmoronaram em apenas alguns segundos durante a noite.

Podemos sentir que o homem que filma no seu telemóvel não sabe bem o que fazer. Sozinho não consegue libertar a menina daquela pilha de betão retorcido e terrivelmente pesado. Ambos ficam quietos.

Os olhos da menina começam a ficar vidrados; a exaustão e a dor são visíveis no seu rosto.

“Fica aqui. Vou buscar ajuda. Vamos tirar-te daí.”

Mas o homem parece indeciso. Este bairro, nivelado pelo sismo, fica provavelmente longe do centro da cidade. Com as ruas e pontes destruídas, a ajuda ainda não chegou. É pouco provável que chegue em breve.

Alguns dos que aqui vivem, que podem ter conseguido sair vivos das suas casas em ruínas para a noite escura e cheia de neve, devem ter ido para outro lugar para se abrigarem do frio. Mas é possível que, além da menina e do seu irmão, mais ninguém da sua família tenha sobrevivido e por isso não há ninguém à sua procura.

“Não vá!”, diz por fim a criança presa.

“Tenho de ir, mas eu volto!”, responde o homem. “Não me vou esquecer de vocês‌. Vou buscar ajuda.”

Podemos ver que a menina, que passou mais de meio dia presa aqui sozinha, já se está a preparar para morrer e não tem mais forças para lutar.

Mesmo assim, repete: “Não vá!”, com uma voz tão fraca como um sussurro.

“Vou buscar ajuda!”, diz o homem, e embora fale mais alto desta vez, é difícil acreditar nele.

É aqui que acaba a gravação do telemóvel. Não sabemos se ‌conseguiu ir buscar ajuda. A sua é uma das centenas de súplicas desesperadas e relatos na primeira pessoa a que assisti naquele primeiro dia, nas horas que estive colado ao ecrã. Como muitos outros, o homem que filmou a menina presa publicou o vídeo no Twitter, diretamente e sem comentários.

Tenho estado à espera de outro vídeo que mostre a menina presa a ser resgatada, mas não chega.

Encontrar ajuda não é tão fácil como o homem com o telemóvel pode ter pensado. De acordo com os números divulgados pelo governo, aproximadamente 7000 edifícios naquela área foram danificados ou destruídos. O terramoto atingiu também a Síria. Assim como o número real de vítimas é provavelmente muito maior do que o que está a ser noticiado (os números mais recentes dizem que o número de mortes é agora mais de 20.000), é provável que o número real de edifícios colapsados também seja muito maior. Com as estradas fechadas e os telemóveis a não funcionarem corretamente por causa de cortes de energia e redes congestionadas, há pouca informação sobre o que está a acontecer nas pequenas cidades de província. No Twitter e nas redes sociais vemos publicações que sugerem que algumas aldeias ficaram totalmente destruídas. Mas será verdade?

O sentimento de abandono e desespero sentido por todo o país é tão angustiante quanto o próprio terramoto

Este é o maior terramoto a atingir a Turquia em mais de 80 anos. É o quarto grande terramoto por que já passei, ao perto ou ao longe, desde criança. Depois do terramoto de Marmara de 1999, que matou mais de 17.000 pessoas, fui a Yalova, uma das cidades devastadas por esse desastre. Vagueei durante horas por entre as ruínas de betão, carregado com um sentimento de culpa e responsabilidade e pensando que poderia pelo menos ajudar a limpar alguns dos escombros, apenas para ter voltado para casa sem ter conseguido ajudar ninguém. A visão impressionante daquele dia ficou comigo, bem como a frustração e tristeza que quero esquecer, mas nunca consegui.

Agora, essas imagens estão a ser substituídas por imagens novas que, no entanto, são muito familiares. O sentimento de impotência é esmagador.

Com os aeroportos destruídos e as estradas intransitáveis, até mesmo os maiores grupos de comunicação social demoraram meio dia a conseguir chegar a várias grandes cidades que o terramoto transformou em verdadeiros infernos. Meio dia após o desastre chegaram às ruas fustigadas pela neve, chuva e vento para encontrar milhões de pessoas que esperam ansiosamente por ajuda. De acordo com os números divulgados pelo governo turco, 13,5 milhões de pessoas na região foram afetadas pelo sismo. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o número de pessoas afetadas na Turquia e na Síria pode chegar aos 23 milhões.

O desastre atingiu dimensões verdadeiramente apocalípticas quando um novo terramoto de magnitude 7,5 atingiu a zona afetada, nove horas após o primeiro terramoto de magnitude 7,8 se ter feito sentir a meio da noite. Este segundo terramoto, cujo epicentro ocorreu a cerca de 60 quilómetros do primeiro, forçou milhões de pessoas, que devido às réplicas do primeiro terramoto tinham vindo para a rua, a testemunhar cenas de verdadeiro horror. Multidões vagueavam pelas ruas peneirando com as mãos nuas, tijolo a tijolo, ruínas de prédios de 16 andares reduzidos a escombros em busca de ajuda ou comida, ou procurando um local quente e protegido para se abrigarem. Começam agora a filmar a destruição com os seus telemóveis, gritando “Oh, meu Deus, Oh, meu Deus”, à medida que, em poucos segundos, edifícios atrás de edifícios se desmoronam como castelos de cartas, deixando apenas nuvens de poeira.

Muitas pessoas publicaram essas imagens de horror grotesco nas redes sociais sem um comentário, uma legenda ou até mesmo algumas palavras a acompanhar. Ao fazê-lo, estão a enviar duas mensagens. A primeiro é a que se manifesta no seu choque: a escala impressionante e surpreendente da catástrofe. A segunda é o sentimento de abandono e desespero sentido por todo o país e que é tão angustiante quanto o próprio terramoto.

Essas cenas apocalípticas trouxeram ao de cima um espírito comovente de solidariedade e assistência mútua e reacenderam o instinto das pessoas de partilhar, testemunhar, deixar uma marca e fazer ouvir as suas vozes. No centro cheio de escombros de todas as grandes cidades, qualquer pessoa ao alcance do microfone de um jornalista parece gritar: “Filme aqui, filme aqui, precisamos de ajuda, precisamos de comida, onde está o governo, onde estão as equipas de resgate?”

A ajuda foi enviada, mas os camiões carregados com material ficam presos durante horas em estradas congestionadas a centenas de quilómetros das áreas afetadas. Quem perdeu a sua casa, família, entes queridos e tudo o que tem, descobre agora que não há ninguém a combater os incêndios que começam a deflagrar nas cidades. E assim bloqueiam a passagem a qualquer veículo oficial, agente da polícia ou funcionário do governo que encontram e começam a protestar. Nunca vi o nosso povo tão zangado.

À medida que o segundo dia se transforma em noite, os ruídos vindos das pilhas de entulho e betão ficam mais fracos e as pessoas nas ruas começam a habituar-se ao horror. Frente a carrinhas que distribuem pão e comida começam a juntar-se multidões. Mas a raiva, a mágoa e o sentimento de desespero de terem sido apanhados desprevenidos permanecem inabaláveis.

No dia seguinte, descubro, através de publicações das redes sociais, que há médicos a viajar para longe por conta própria para ajudar nalgumas das grandes cidades destruídas por este sismo, mas parece não haver autoridade, ninguém está a coordenar e a direcionar esta ajuda para onde é necessária. Para choque e consternação das pessoas, até mesmo alguns hospitais públicos entraram em colapso.

Dois dias mais tarde, começou a chegar alguma ajuda aos centros das principais cidades. Mas para muitos, foi muito pouco e demasiado tarde.

(Fonte: Expresso - Artigo publicado originalmente no “The New York Times” e escrito nos primeiros dias após o sismo que atingiu a Turquia e a Síria, a 6 de fevereiro)