Alguns dos dois milhões de seguidores no Facebook da escritora turca Elif Shafak são leitores portugueses, que em apenas um ano teve traduzidos em Portugal dois romances: "A Bastarda de Istambul" e "A Cidade nos Confins do Céu". Não será por acaso que Shafak considera que "as pessoas, a cultura, as artes e a literatura de ambos os países estão no meu coração", pois além do sucesso literário em Portugal ela conhece bem o país por ter passado cá algumas temporadas em criança. Não consegue deixar de referir que "tanto as palavras como a imaginação dos dois povos se interligam" e que, confessa, "gostaria de voltar a Lisboa logo que possível".
Entretanto, Elif Shafak divide-se entre Londres e Istambul: "Sou uma nómada que vive entre as duas cidades e culturas e que acredita ser possível sermos cidadãos mundiais. Não consigo deixar de ser uma cidadã de Istambul e de Londres ao mesmo tempo. Por vezes, sonho nas duas línguas, mesmo que escreva em inglês porque me ajuda a ter uma perspetiva mais clara da Turquia, livre de inibições culturais. Assim, sinto-me mais livre."
Pergunta-se à escritora se a atualidade turca, de atentados e terrorismo, a irão inspirar alguma vez num romance, ao que responde: "Estou a terminar um romance que é bastante diferente de "A Cidade nos Confins do Céu", pois trata de um tema contemporâneo e é um espelho da sociedade turca atual. Até responde a uma questão que será de âmbito mundial, porque é a história de uma jovem que busca respostas para esta época de fanatismo em torno de Deus."
Aproveita-se o rumo das respostas para comparar o palácio do sultão deste romance com os ideais imperialistas do atual primeiro-ministro, Erdogan: "É verdade que pode haver comparações, mesmo que na realidade não vivamos mais em tempos imperiais. A Turquia tem estado a deslizar para o passado e a fugir de uma democracia pluralista e liberal. Estou preocupada com a minha pátria e que possamos perder a nossa democracia. Só para compararmos, a arquitetura do império Otomano era mais avançada do que a atual. Essa situação não deixa de ser irónica".
Segue a receita de "A Bastarda de Istambul": uma boa história por uma boa contadora. É verdade?
Obrigada...Tenho um passado multidisciplinar: relações internacionais, história cultural, estudos sobre as mulheres e filosofia política. Estou interessada em histórias e os seus silêncios, portanto cada romance é uma nova jornada. Até porque os livros fazemos mudar também o escritor, não é apenas aos leitores que causam esse efeito! Quando acabo um romance já não sou a mesma pessoa.
Prefere escrever no passado, neste caso no império Otomano, ou no presente?
Eu gosto do entendimento circular do tempo Sufi, onde tudo está interligado, seja passado ou presente. Por isso, podemos escrever sobre o passado mas, de facto, é sobre o presente que falamos. Ou quando escrevemos sobre a atualidade e reproduzimos o passado e as memórias de outro tempo. Eu quero dar voz ao silêncio da História, tanto que nos meus livros os sem voz são sempre ouvidos. Principalmente os das minorias: sexual, étnica ou cultural.
O protagonista é um jovem. É fácil pensar e escrever como homem?
Desde que consiga interiorizar o personagem tanto me faz o seu género. Essa é a beleza da ficção, sempre aberta a múltiplas possibilidades e a podermo-nos transcender. Enquanto escrevo, gosto de ir além da identidade com que nasci e evitar as políticas identitárias. Posso tornar-me alguém de outra religião, sexo, classe social ou nacionalidade. Sou livre! Cada vez que chego ao fim de um dia de escrita, eu acredito que o escritor precisa de ser bissexual para conter ambas as vozes masculina e feminina.
O jovem protagonista tem a cumplicidade das mulheres do palácio. Porque prefere contar a história através do olhar feminino?
Ao longo dos tempos, as mulheres sempre foram as melhores contadoras de histórias; transferindo-as - e a muitos segredos também - das bisavós para as avós e gerações seguintes, tanto no Oriente como no Ocidente. Eu tenho um grande respeito pela história oral porque cresci com a minha avó e lamento que muitas destes relatos se tenham perdido ou ficado por registar. Sempre os ouvi com sofreguidão e considero que uma parte de mim deseja que essa tradição se mantenha a todo o custo. Até porque na Turquia há um fosso entre a cultura escrita e a oral muito profundo. Venho de uma sociedade de matriz patriarcal, pois a Turquia é uma sociedade dominada pelos homens, muito sexista e homofóbica. Daí que pretenda dar nos meus livros uma voz potente às mulheres e às minorias sexuais.
O romance "40 regras do Amor" foi um grande sucesso na Turquia apesar dessa sociedade machista"!
A Turquia está a atravessar uma grande fase de mudanças e há bastante tensão numa sociedade assim. Está bastante dividida e polarizada, o que provoca na população uma sensação de claustrofia, de ficar fechada, até diria com um pendor isolacionista. Além de criar um grande sentimento nacionalista, de religiosidade e de estabelecimento de dogmas. Num ambiente destes, um romance sobre o amor gerou muita curiosidade.
A religião está sempre presente. É impossível fugir-lhe no islão?
Além da história, é a religião que está sempre presente. Faço sempre uma distinção entre a religiosidade e a espiritualidade. Nesta última, estou interessada, tal como no misticismo. Isso não quer dizer que seja religiosa, pois não sou mesmo uma pessoa religiosa. O que me interessa é a essência. Posso dizer que sou inspirada pelo misticismo islâmico, pelo misticismo cristão, pelo misticismo judaico, pelo taoismo e outros. Gosto dos heréticos e dos heterodoxos de cada religião, porque essas vozes vão sendo perdidas no decurso do tempo. Elas acreditavam que a espiritualidade era pessoal e exigia uma viagem individual. Eram vozes de paz, que deveriam falar mais alto.
Este romance, agora traduzido para português, é considerado o seu mais ambicioso. Concorda?
É o que a crítica refere, mas como sou uma contadora de histórias sinto-me ligada a todos eles. O meu favorito é sempre aquele que me falta escrever.
Que pesquisa teve de fazer para escrever no passado de há séculos?
Este foi dos livros que mais investigação exigiu. Tive de ler muito sobre a arquitetura, o islão, saber como era a vida dos ciganos no império Otomano, o harém, os animais, etc. Era preciso ter atenção para todos os detalhes em causa.
Colocar um romance no império Otomano seduz os leitores turcos?
A Turquia é uma sociedade de amnésia coletiva. As pessoas não estão interessadas no passado ou, quando o estão, é para hiper romantizarem essa época. Dificilmente se encontra quem queira debater este tema de forma crítica porque a memória é uma grande responsabilidade. Daí que os escritores tenham um papel muito importante nestas terras de amnésia coletiva.
Adapta os seus livros quando saem na Turquia?
Eu escrevo em inglês, por isso a tradução para o turco é feita por um tradutor especializado. Leio a tradução e reescrevo ao meu ritmo. Até pode parecer um pouco complexo este processo, mas exijo que o texto fique no meu tom.
A Istambul que descreve no romance é muito diferente da cidade e das pessoas atuais?
Há semelhanças muito estranhas, daquelas que os leitores se apercebem facilmente. Mas há também diferenças muito grandes, que não se apreendem logo. Eu retrato um arquiteto do século XVI, Sinan, que era um génio e um grande urbanista. Era mais iluminado que os profissionais desta área atuais, que fizeram de Istambul um estaleiro de construção que pouco respeitam. Se ele regressasse, ficaria horrorizado com o estado de Istambul. Provavelmente, choraria.
Este romance é também sobre a destruição e a preservação das memórias através da arquitetura?
Sim, numa sociedade que já disse ser de amnésia coletiva, a arquitetura preserva as memórias. O que cria uma responsabilidade aos arquitetos e escritores. Estamos a tratar do que foi esquecido e é preciso providenciar a continuidade numa sociedade que se altera de forma descontrolada. Por isso é que digo no romance que Istambul é uma cidade de esquecimentos fáceis.
(Fonte: DN)