Quando Olga Roriz foi atrás de uma mulher turca e descobriu a própria vida
Antecipando um ano de 2015 em que comemorará com uma retrospectiva os aniversários da sua companhia e da sua carreira na dança, Olga Roriz volta a apresentar o solo Os Olhos de Gulay Cabbar na Culturgest, em Lisboa.
Foi numa viagem de táxi, algures no final dos anos 90, que Olga Roriz foi assaltada pela ideia de uma nova criação que se viria a chamar Os Olhos de Gulay Cabbar. Após folhear uma revista e ficar hipnotizada durante alguns minutos pela “imagem fantástica de uma mulher, dentro de um carro enlameado, com o pescoço estirado para trás”, virou finalmente a página.
No verso daquela fotografia pungente, que retratava o drama de uma mulher lutando pela sobrevivência durante as cheias que vergastaram a Turquia em 1998, a coreógrafa e bailarina haveria de descobrir um totalmente desconexo artigo sobre eczemas. O abanão que então sofreu, diante de um alinhamento noticioso que parecia nivelar acriticamente dois assuntos de grandeza diferente, fê-la decidir-se a explorar o universo mediático. “Pensei fazer uma peça sobre isso. Mas toda a exigência de construir um solo através da viagem desta mulher comeu completamente essa ideia.”
Os Olhos de Gulay Cabbar, tomando o nome da cidadã turca que conseguiu salvar-se das torrenciais águas lamacentas do rio Dereagzi, acabaria por fundir este mote com a própria biografia de Olga Roriz. Por isso mesmo, a revisitação de 12 a 14 de Dezembro, na Culturgest (Lisboa), do solo estreado em 2000 no Citemor, acabaria por ser a escolha da coreógrafa para antecipar o arranque das comemorações dos 20 anos da sua companhia e dos 40 da sua carreira na dança que, em 2015, vão povoar vários palcos nacionais com uma retrospectiva que irá de Propriedade Privada (1996) a Terra (2014).
“É o solo que anda mais perto do meu próprio corpo, sou eu mais nua, num sentido lato. Na altura, por via daquela personagem e daquela situação, fui encontrar uma série de coisas muito minhas, muito autobiográficas, e estou ali instalada nas minhas facetas mais ternas, mais agressivas, mais dramáticas, mais sensuais.” Talvez porque, apesar do peso dramatúrgico que é uma constante nas criações de Olga Roriz, em Os Olhos de Gulay Cabbar formam-se dois discursos paralelos: o movimento, coreografado com absoluto rigor, e o texto, escrito e dito pela própria na versão original.
Aquilo que agora muda, passados 14 anos, é sobretudo a perspectiva de Olga Roriz. Impedida, em virtude de problemas físicos do momento, de voltar a habitar em palco a personagem que compôs para Gulay Cabbar, a coreógrafa legou em Marta Lobato Faria o desafio de encarnar esta mulher “roubada” à realidade.
O casting, no entanto, não foi tarefa fácil e Roriz admite que só nesta bailarina encontrou o conjunto de características que entende serem essenciais para a peça: “o lado masculino / feminino, a força física e muscular, a delicadeza, o estado zen, o gostar e degustar os movimentos lentos, a parte muito sensual, o lado dramático”, descreve.
A lentidão dos movimentos é, de facto, uma das chaves da coreografia, como que evocando paradoxalmente o momento de pânico vivido por Cabbar, enquanto o seu carro hesitava em abandonar-se à correnteza. Mas até para a criadora essa vagareza é surpreendente.
“É curioso, não tinha a noção de que era assim”, diz reflectindo sobre o processo em que se observou nas gravações em vídeo e dirigiu a nova vida do solo no corpo de Lobato Faria. “Tive uma sensação estranhíssima, como não reconhecesse o solo, porque lá dentro não é nada lento, é muitíssimo esquizofrénico, apesar de não haver uma viagem especial.”
A bailarina está sempre no centro, descida de uma corda umbilical que a amarra e da qual se consegue libertar, como início de um percurso – a tal viagem que Olga Roriz reconhece ter um carácter cíclico e catártico. Em Os Olhos de Gulay Cabbar, há uma aproximação à morte, ao fim, a um desvanecimento que acaba por se transformar progressivamente na sugestão de um recomeço, simultâneo no texto e no corpo da bailarina.
“Se a arte da dança é esta coisa muito abstracta e sai por golfadas, por sentimentos um pouco mais à flor da pele”, compara, é o concreto do texto que a transporta novamente para um “nozinho na garganta” e que lhe devolve “a tristeza daquele período conflituoso”. “Tudo isto foi acompanhado pela minha privada, que neste espectáculo teve muita influência. Foi sempre assim – da porcaria faço, por vezes, objectos que me fazem sentir que valeu a pena.”
Agora, que estará de fora e não no centro do palco, Olga Roriz diz ter-se libertado também de “uma certa timidez” que antes a cobria de vergonha, quando, por exemplo, se virava para o público dizendo “vocês são-me completamente indiferentes” – sem se saber se era uma fala de rancor ou de desespero. Agora, já será a personagem a dizê-lo, e não ela. Também Olga Roriz, de alguma maneira, se terá libertado.
(Fonte: Público)