terça-feira, 20 de janeiro de 2009

"Os Três Macacos" de Nuri Bilge Ceylan em exibição no Porto

O filme "Uç Maymun" ("Os Três Macacos"), do aclamado realizador turco Nuri Bilge Ceylan e galardoado no Festival de Cinema de Cannes em 2008 com o prémio de Melhor Realizador, encontra-se agora em exibição no Porto no Cinema do Campo Alegre.



sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

A Biblioteca de Orhan Pamuk


No coração da minha biblioteca está a biblioteca do meu pai. Quando eu tinha 17 ou 18 anos e comecei a dedicar a maior parte do meu tempo à leitura, devorei os volumes que o meu pai guardava na nossa sala de estar, bem como os que eu descobria nas livrarias de Istambul. Nesses tempos, se eu lesse um livro da biblioteca do meu pai e gostasse dele, levava-o para o meu quarto e colocava-o no meio dos meus livros. O meu pai, que ficava satisfeito por ver que o seu filho lia, ficava também feliz ao ver alguns dos seus livros a emigrarem para a minha biblioteca, e sempre que via um dos seus velhos livros na minha estante, brincava comigo, dizendo-me: "Ah, vejo que este volume já foi promovido a uma patente superior!"

Em 1970, quando tinha 18 anos, eu - como todas as crianças turcas que se interessavam por livros - comecei a escrever poesia. Nessa altura eu pintava e estudava Arquitectura mas a satisfação que tirava de ambas estava a desaparecer; à noite fumava cigarros e escrevia poesia, que escondia de toda a gente. Foi então que li as colecções de poesia que o meu pai (que quando era novo quisera ser poeta) mantinha nas suas estantes.

Adorei os desbotados e esguios livros de poetas que eram considerados pelas Letras turcas como pertencendo à Primeira Vaga (décadas de 1940 e 1950) e à Segunda Vaga (anos 60 e 70); após lê-los, eu queria escrever poemas da mesma forma que eles. Os poetas da Primeira Vaga - Orhan Veli, Melih Cedvet e Okay Rıfat - são recordados pelo nome da primeira colectânea de poesias que publicaram em conjunto: Garip, ou Estranho. Eles trouxeram para a moderna poesia turca a linguagem das ruas, exultando na sua sagacidade e recusando as convenções formais da linguagem oficial e o mundo opressivo e autoritário de que estas faziam eco. O meu pai por vezes abria uma primeira edição de um destes poetas e entretinha-nos com um ou dois dos seus singulares e caprichosos poemas, lendo-os em voz alta e adoptando um ar que nos fazia perceber que a literatura era um dos mais maravilhosos tesouros da vida.

Os poetas da Segunda Vaga também me inspiraram. Eles passaram este espírito de inovação para a geração seguinte, dando à poesia uma voz narrativa e expressionista, e trazendo também, de vez em quando, para as suas composições uma mistura de dadaísmo, surrealismo e motivos ornamentais; quando lia estes poetas agora já falecidos (Cemal Sureya, Turgut Uyar, Ihan Berk), ficava convencido que podia escrever como eles escreviam, da mesma forma que alguém que olha para uma pintura abstracta pode ser suficientemente ingénuo para pensar que ela própria podia fazer uma pintura daquelas. Ou melhor, eu era como um artista que, quando olha para uma pintura que admira, pensa que percebeu como é que ela foi feita. Da mesma maneira que esse artista voltava a correr para o seu atelier para provar que tinha razão, eu dirigia-me logo para a minha secretária para escrever poesia.

Com algumas raras excepções, o trabalho produzido por todos os restantes poetas turcos era artificial e distante do mundo do dia-a-dia, por isso não me interessam enquanto poemas; foi a sua base intelectual que me interessou. Enquanto se debatia sob a esmagadora influência da ocidentalização, da modernização, e da Europa, que podia o poeta local salvar das danificadas, e em rápido desaparecimento, tradições literárias turco-otomanas, e de que forma? Qual era a sua relevância para a poesia moderna, agora que a sua beleza e os seus conceitos literários apenas podiam ser compreendidos por gerações mais novas com a ajuda de dicionários e guias?

As questões incómodas associadas com a "inspiração na tradição" ocuparam imenso os escritores da geração que me precedeu, e também a minha geração. Dado que a poesia otomana florescera durante séculos, mantendo-se sempre afastada da influência ocidental, havia um sentimento de continuidade, e isso tornava mais fácil e mais confortável a discussão literária e as questões filosóficas que se referiam à poesia. Como o romance era uma importação da Europa, os romancistas e escritores em prosa que desejavam ligar-se à nossa própria tradição literária voltaram a sua atenção para a poesia.

No início da década de 1970, após o meu entusiasmo pela poesia se ter acendido e rapidamente extinguido, e após ter decidido que me ia tornar romancista, a poesia era ainda vista na Turquia como verdadeira literatura, e já o romance era considerado uma forma menor e popular. Não seria errado afirmar que o romance conseguiu ser tomado mais a sério ao longo dos últimos 35 anos, enquanto a poesia perdeu alguma da sua importância. No mesmo período, a indústria de edição cresceu a uma velocidade estonteante, oferecendo cada vez mais diversidade a cada vez mais leitores.

Na época em que decidi tornar-me escritor, nem os poemas nem os romances eram valorizados como expressões individualizadas de uma sensibilidade artística, de um espírito diferente, de uma alma: a percepção dominante era a de que os escritores sérios trabalhavam colectivamente, e o seu trabalho era valorizado pela forma como este contribuía para uma utopia social e reflectia uma visão partilhada (como o modernismo, socialismo, islamismo, nacionalismo ou republicanismo secular). Nos círculos literários havia pouco interesse pelo problema do escritor criativo individual que se inspirava na História e na tradição, ou que tentava encontrar a forma literária que melhor acomodava a sua voz.

Em vez disso, a literatura era aliada do futuro: a sua função era trabalhar de mão dada com o Estado na construção de uma feliz e harmoniosa sociedade, ou até mesmo nação. O modernismo utópico - fosse secular, republicano ou socialista igualitário - tinha os olhos tão firmemente postos no futuro que chego por vezes a pensar que estava cego face ao coração e à alma de quase tudo o que se passava nas ruas e casas de Istambul ao longo do século passado. Parece-me que os escritores que se empenham tão apaixonadamente na questão de como trazer à Turquia um futuro brilhante não contam uma história tão honesta das nossas vidas como escritores como Ahmet Hamdi Tanpınar e Abdulhak Sinasi Hisar, que lamentaram a perda da nossa cultura tradicional, ou Sait Faik e Aziz Nesin, que estiveram atentos à poesia das ruas de Istambul e amaram a cidade sem preconceitos.

Nesta época de ocidentalização e rápida modernização, a questão central - não apenas para a literatura turca mas para todas as literaturas não ocidentais - é a dificuldade de pintar os sonhos do amanhã com as cores de hoje, de sonhar com um país de valores modernos que ao mesmo tempo abraça os prazeres da tradição quotidiana. Escritores cujos sonhos de futuro radical os impelem para conflitos políticos têm muitas vezes acabado na prisão, e o seu sofrimento tem dado um aspecto duro e ressentido às suas vozes e às suas perspectivas.

Na biblioteca do meu pai estava também o primeiro livro publicado por Nazim Hikmet - o mais importante poeta da Turquia - nos anos 30, antes de ele ser preso devido às suas ideias revolucionárias. Por mais impressionado que eu tenha ficado com o tom de esperança e de raiva destes poemas, pela sua visão utópica e pela sua inovação formal, inspiradas pelo futurismo russo, não fui menos afectado pelo sofrimento que este poeta suportou, e pelos seus anos atrás das grades, e pelos relatos da vida na prisão e cartas dos romancistas realistas como Orhan Kemal e Kemal Tahir, que cumpriram penas nas mesmas prisões. Consegue-se fazer uma biblioteca apenas com as memórias, romances e contos de intelectuais e jornalistas turcos que acabaram na prisão.

Houve uma altura em que eu lia tanta literatura de prisão que sabia tanto sobre a rotina diária das alas, a fanfarronice e a linguagem dura (e o calão da prisão, que eu muito apreciava) como se eu próprio tivesse cumprido pena de prisão. Nesses tempos, a minha imagem de um escritor era a de alguém que tinha sempre a polícia estacionada à porta de casa, era seguido na rua por agentes à paisana, tinha o telefone sob escuta, não podia ter passaporte e na prisão escrevia cartas pungentes para a sua amada. Esta forma de vida, que eu apenas conhecia dos livros, não era algo que eu quisesse para mim próprio, mas considerava-a romântica. Quando, 30 anos mais tarde, tive problemas de natureza semelhante, consolei-me ao lembrar-me de que os meus problemas eram tão mais pequeninos do que aqueles que tinham tido os escritores que eu lia quando era jovem.

Lamento não ter conseguido afastar a utilitária e iluminada ideia de que os livros existem para nos preparar para a vida. Talvez isto seja porque a vida de um escritor na Turquia é a prova de que eles afinal preparam. Mas tem também algo a ver com o facto de que naquela altura faltava na Turquia o tipo de biblioteca onde conseguíssemos facilmente encontrar qualquer livro que quiséssemos. Na biblioteca imaginária de Borges, cada livro toma um aspecto místico, e a própria biblioteca oferece sugestões infinitamente poéticas e metafísicas, num eco da complexidade do mundo exterior; por trás deste sonho estão bibliotecas reais com mais livros do que alguém poderá alguma vez contar ou ler. Borges era o director de uma biblioteca desse tipo em Buenos Aires. Mas quando eu era novo não havia uma livraria comparável em Istambul ou em toda a Turquia. Quanto a livros em línguas estrangeiras, nem uma única biblioteca pública os possuía. Se eu queria aprender tudo o que havia para ser aprendido e tornar-me uma pessoa sábia e assim escapar aos constrangimentos da literatura nacional - impostos pelas cliques literárias e pela diplomacia literária, e reforçada por proibições asfixiantes -, ia ter que construir a minha própria grande biblioteca.

Entre 1970 e 1990, a minha maior preocupação, logo após escrever, era comprar livros para a minha biblioteca; queria que ela incluísse todos os livros que eu considerava importantes ou úteis. O meu pai dava-me uma mesada substancial. Desde os meus 18 anos eu tinha o hábito de ir uma vez por semana a Sahaflar, o mercado de livros usados em Beyazit, no centro da Cidade Velha. Passei muitas horas e dias nas suas pequenas lojas, que eram aquecidas por pequenos e pouco eficientes radiadores eléctricos, e apinhadas com torres de livros não classificados, e toda a gente parecia pobre - desde o vendedor ao dono da loja, do visitante ocasional ao cliente fiel.

Eu ia a uma dessas lojas vender livros em segunda mão, pesquisar todas as prateleiras, inspeccionar todos os livros, e, um por um, escolhia uma história das relações entre a Suécia e o Império Otomano no século XVIII; ou as memórias do médico-chefe do Hospital de Loucos de Bakirkoy; ou a reportagem de um jornalista sobre um golpe falhado; a monografia dos monumentos turcos na Macedónia; ou um resumo em turco dos escritos de um professor da Faculdade de Medicina de Çapa sobre doenças maníaco-depressivas e a predisposição para a esquizofrenia; ou uma pequena colectânea de poemas de um poeta otomano esquecido numa edição em turco actual; ou um livro de propaganda ilustrado, publicado pelo Gabinete do Governador de Istambul nos anos 40 e que mostrava todos os edifícios e parques em fotografias a preto e branco.

Após regatear com o vendedor, levava-os todos. No início, coleccionava todos os clássicos da literatura turca e do mundo turco - seria mais correcto descrever esses livros como sendo "importantes" para a literatura turca. Eu pensava que certamente iria também ler outros livros, tal como tinha feito com os clássicos. Mas quando a minha mãe, que estava preocupada comigo, porque achava que eu lia de mais, me via a trazer mais livros do que conseguiria alguma vez ler, dizia, aborrecida: "Por uma vez na vida, não vás comprar mais livros até teres acabado estes!"

Eu não comprava como o faz um coleccionador, mas sim como uma pessoa frenética que estava desesperada para perceber por que razão a Turquia era tão pobre e cheia de problemas. Quando eu estava nos meus vinte anos e os meus amigos me vinham visitar à casa onde eu vivia com os meus pais, e me perguntavam por que razão eu andava a comprar aqueles livros que estavam a encher a casa tão rapidamente, eu nunca conseguia dar-lhes uma resposta que os satisfizesse. O padrão nas Lendas de Gumushane; a descrição por dentro da rebelião contra Atatürk, escrita por Ethem, o Circassiano; o inventário dos assassínios políticos durante o Segundo Período Constitucional (1908-1922), quando os Jovens Turcos estavam no poder; a história do papagaio que o embaixador em Londres enviou ao sultão Abdulhamit; a colectânea de modelos de cartas de amor para tímidos; as memórias políticas do médico que abriu o primeiro sanatório na Turquia; as notas das conferências que um comissário que ensinava cadetes da escola de polícia dava sobre pequenos crimes de rua cometidos por carteiristas, vigaristas e outros que tais.

E depois havia os seis volumes, recheados de documentos, das memórias de um antigo presidente; outro livro mostrava detalhadamente as formas como o código moral otomano havia influenciado as práticas comerciais modernas; as memórias parisienses de um artista dos anos 30 desaparecido; um livro acerca dos esquemas utilizados pelos mercadores para aumentar o preço das avelãs; uma pesada colectânea de 500 páginas de críticas aos marxistas alinhados com a China e a Albânia, escritas por marxistas alinhados com a União Soviética; a história da transformação da cidade de Eregli após a abertura das suas fábricas de ferro e aço; um livro para crianças intitulado 100 Turcos Famosos; a história do grande incêndio de Aksaray em 1911; um apanhado de colunas escritas no período entre as duas guerras mundiais por um jornalista que nos últimos 30 anos havia sido completamente esquecido; duzentas páginas de História cobrindo dois mil anos de uma pequena cidade na Anatólia Central cuja localização exacta era difícil apontar em qualquer mapa; e as alegações de um professor reformado que, apesar de não saber nada de inglês, havia descoberto quem assassinara Kennedy apenas pela leitura dos jornais turcos. Estava eu suficientemente interessado nos autores de tais obras para as ler da primeira à última página? Nos anos que se seguiram, sempre que alguém me perguntava "Senhor Pamuk, leu mesmo todos os livros que tem na sua biblioteca?", eu, e sem de forma alguma menosprezar a pergunta, respondia: "Sim. Mas mesmo que não os tivesse lido todos, eles podiam continuar a ser úteis."

Eu estava a falar a sério, e quando era jovem a minha ligação com os livros era limitada pelo optimismo de um incurável positivista que acreditava que conseguiria dominar o mundo inteiro através da aprendizagem e do conhecimento. Eu acreditava que um dia usaria toda aquela erudição num romance. Existe em mim algo do herói autodidacta d'A Náusea de Jean-Paul Sartre, que lê todos os livros da biblioteca pública, de A até Z, e também do Peter Klein, o protagonista de Auto de Fé de Elias Canetti, que era tão ferozmente orgulhoso dos seus livros como um soldado será do seu regimento. Para mim, a biblioteca borgesiana não é a fantasia metafísica de um mundo infinito - é a biblioteca que eu construí na minha casa em Istambul, volume por volume. Pegava num livro sobre os fundamentos legais da economia agrícola otomana nos séculos XV e XVI. Foi por ler aquele livro sobre os impostos das peles de tigre que descobri que naquela altura havia tigres a percorrer a Anatólia. Foi nos pesados volumes que continham as cartas escritas no exílio por Namik Kemal, o poeta romântico, activista, patriota e pedagogo do século XIX (o Vítor Hugo da Turquia!), que aprendi que o nosso lendário poeta, o ubíquo herói dos livros escolares e das histórias dos miúdos, usava uma linguagem extraordinariamente indecente. Uma divertida autobiografia de um deputado encarcerado; um relatório escrito por um corretor de seguros sobre os mais interessantes casos de incêndio e acidentes de viação que ele encontrara ao longo da sua carreira; as memórias de um diplomata afectado cuja filha foi minha colega de turma - quando dava com livros destes, comprava-os imediatamente.

Eu estava a perder a vida real enquanto me enterrava em livros - mas mesmo quando eu percebia isto, continuava a comprar livros, como se assim me vingasse da vida que estava a deixar para trás. Só agora, tantos anos depois, compreendo quão felizes foram aquelas horas que passei a fazer amizades com os vendedores naquelas livrarias geladas, a beber o chá que eles me ofereciam e a inspeccionar aquelas poeirentas torres de livros de cima a baixo.

Depois de mais de dez anos a vasculhar as prateleiras dos alfarrabistas e antiquários de Istambul no Mercado de Sahaflar, concluí que todos os livros publicados em alfabeto latino desde a fundação da república até à década de 1970 haviam passado pelas minhas mãos. Por vezes, calculava que haveria no máximo 50 mil livros publicados durante o período de 50 anos que se seguiu à decisão de Atatürk de levar toda a nação da escrita arábica para o alfabeto latino em 1928. Em 2008, este número pouco tinha passado dos 100 mil. Talvez eu fosse impelido por um qualquer plano secreto para juntar todos estes livros na minha biblioteca...

Mas a maior parte das minhas escolhas eram espontâneas e impulsivas. Comprar livros um a um é um pouco como construir uma casa tijolo a tijolo. Nos anos 80 vi muitos iguais a mim, não apenas nas lojas de livros em segunda mão, mas também em todas as livrarias generalistas de Istambul. Estou a falar de pessoas que entravam nas livrarias às cinco ou seis da tarde e perguntavam "Chegou alguma coisa nova hoje?" e depois pesquisavam cada um dos livros que tinham chegado à livraria desde o dia anterior.

Actualmente, são publicados cerca do triplo dos livros de há 30 anos, mas na década de 80 a média de livros editados na Turquia era de apenas três mil. Eu folheei a maioria deles, e quase metade eram traduções. Como havia tão poucos livros importados do estrangeiro, eu lia estas traduções rápidas e descuidadas num esforço para perceber o que se estava a passar no mundo da literatura.

Nos anos 70, as estrelas de todas as livrarias eram os enormes volumes históricos que procuravam perceber as causas da pobreza da Turquia, o seu "retrocesso" e as suas convulsões sociais e políticas. Estes ambiciosos livros de História modernos apresentavam um tom zangado; em claro contraste com os antigos livros de História otomanos que estavam então a ser publicados em grandes quantidades em turco moderno - e eu também comprei estes todos -, os novos livros de História nunca nos culpavam demasiado pelas catástrofes que tínhamos sofrido, preferindo atribuir a nossa pobreza, a nossa falta de educação e o nosso "retrocesso" às potências estrangeiras ou a algumas poucas almas diabólicas e corruptas que estavam no meio de nós, e talvez seja por isto que estes volumes eram tão largamente lidos e apreciados.

Nunca consegui resistir a nenhuma história, romance ou biografia que examinasse os golpes militares e movimentos políticos dos nossos tempos, ou as séries de derrotas militares ao longo dos últimos anos do Império Otomano, ou a interminável lista de assassínios políticos, em que cada levava a um segredo, uma conspiração maléfica ou um jogo entre potências estrangeiras. As histórias de cidades escritas por professores reformados, e publicadas pelas câmaras municipais ou pelos próprios autores, as memórias de médicos idealistas, engenheiros, cobradores de impostos, diplomatas e políticos, as histórias de vida de estrelas de cinema, os livros acerca de xeques e seitas, as revelações de maçons em que os bois eram chamados pelos seus nomes - comprei-os todos, porque continham um pouco de comédia, um pouco de vida, e um pouco de realidade, e, se não tivessem mais nada, tinham pelo menos um pouco da Turquia.

Quando eu era criança, adorava ler livros sobre Atatürk escritos pelos seus amigos e colaboradores mais próximos. Eram escritos por pessoas que conheciam bem Atatürk e realmente o amavam; devido às leis que protegem a memória de Atatürk, era muito difícil para as gerações seguintes escrever sobre o seu lado humano, e assim a imagem de Atatürk foi remodelada para o fazer parecer como um supremacista autoritário, e o seu respeitado nome foi usado e abusado para justificar a repressão política e leis draconianas. Na Turquia actual, continua a ser um crime insultar a memória de Atatürk. Não se pode retratá-lo como uma pessoa normal num romance ou escrever uma biografia autorizada sobre ele sem acabar na prisão. Mas, mesmo assim, centenas de livros sobre ele são escritos todos os anos. Talvez isto seja devido - como acontece com todos os livros sobre o islão - a que as proibições simplificam um problema difícil e complexo, e como tal confortam os seus autores.

Em meados dos anos 70, quando eu já desistira dos meus sonhos de ser pintor e arquitecto e decidira tornar-me romancista, eram publicados na Turquia anualmente entre 40 e 50 romances. Eu folheava-os todos e acabava por comprar a maior parte deles, pensando que um dia me poderiam ser úteis; se eu gastava tempo a passar os olhos por eles, não era porque tivessem mérito literário, mas porque eu podia encontrar neles descrições da vida nas aldeias e pequenas cidades turcas e pedaços da vida de Istambul. O nosso ilustre crítico da década de 1950, Nurullah Ataç (que vociferava na sua defesa do nosso direito de pedir emprestado à civilização ocidental, e em especial à cultura francesa, mas que não conseguia resistir a gozar com as estupidezes cometidas por escritores pouco letrados, quando estes imitavam os franceses), disse uma vez que, num país como o nosso, por vezes era necessário pelo menos comprar alguns dos livros que chegavam ao mercado, apenas para ajudar o autor e o editor. Eu segui o seu conselho.

Enquanto folheava esses livros, eu sentia-me parte de uma cultura, de uma História; pensava nos livros que eu próprio um dia escreveria, e ficava feliz. Mas por vezes era inundado por uma perigosa melancolia. Esmagado pelos erros tipográficos num livro, ou pela negligência do autor e do seu editor, a minha atenção desvanecia-se; estava a ler um livro sobre um tema merecedor de uma análise alargada e profunda, e doía-me quando percebia que o autor a tinha aniquilado, com a sua pressa, a sua raiva ou o seu pânico. E, de qualquer forma, o próprio tema parecia-me um pouco tolo, e também algo trivial... Também me entristecia quando um livro idiota e sem valor era muito admirado, ou quando um outro livro que era tão interessante e encantador não atraía qualquer atenção...

Tais choques originavam uma maior e mais profunda ansiedade, e lentamente eu começava a sentir o ominoso calafrio da nuvem que paira durante toda a vida sobre os não-ocidentais com interesses literários: quão importante poderia ser saber que havia tigres a vaguear pela Anatólia nos séculos XV e XVI? Qual era o interesse de pesquisar a influência da literatura indiana em Asaf Halet Çelebi, um poeta que mesmo os leitores turcos mal conheciam? Também não me parecia muito importante saber que as multidões que tinham causado motins em Istambul a 6 e 7 de Setembro de 1955, destruindo as lojas e pilhando os lares das minorias grega, arménia e judia de Istambul, tinham tido o beneplácito e o apoio não apenas dos serviços secretos da Turquia, mas também do Reino Unido, que via com relutância que Chipre se tornasse parte da Grécia; nem me parecia importante saber o que Atatürk tinha discutido com o xá do Irão durante a sua viagem pelo Bósforo acima. Tinha a sensação de que aqueles que tinham investigado estes temas, e escrito romances e ensaios históricos sobre eles, o haviam feito para nada.

Nos meus dias mais negros, sentia-me como Faruk, o protagonista do meu segundo romance, A Casa do Silêncio, que estudava documentos dos arquivos otomanos de há muitos séculos, e levava-os na sua cabeça, nunca esquecendo os factos que eles continham, mas não conseguindo relacionar-se com um único dos documentos: eu questionava-me acerca da "importância" de ter preservado com sucesso detalhes de toda uma História, de toda uma cultura, de toda uma língua. Quão importante era saber quem tinha ateado o Grande Incêndio de Esmirna em 1922? Parecia-me que, para além de mim, apenas haveria quatro ou cinco pessoas que queriam saber as razões por trás do golpe militar de 27 Maio de 1960, ou da fundação do Partido Democrata após a Segunda Guerra Mundial. Será que era por a cultura turca ser demasiado política? Ou será que era por o país se expressar fundamentalmente através da política? Ou será que era o nosso sentimento de estar tão longe do centro - de viver nas margens - que fazia uma pessoa ver tão pouco valor na sua biblioteca nacional?

Quando reflectia sobre os factos que tinha aprendido nos livros que tão alegremente trazia para casa, quando ponderava em quão pouca importância eles tinham para o resto do mundo, sentia-me vazio e inútil, e todo o prazer se desvanecia. Mas, apesar de, nos meus vintes, eu ser perseguido pela ideia de que vivia longe do centro dos acontecimentos, isso não me impediu de amar intensamente a minha biblioteca. Quando estava nos meus trintas, e fui pela primeira vez à América, para ver outras bibliotecas e ficar face a face com a riqueza da cultura mundial, entristeceu-me perceber quão pouco se sabia sobre a cultura turca, as Letras turcas. Ao mesmo tempo, essa dor permitiu que o romancista que havia em mim conseguisse mais claramente ver a diferença entre os aspectos transitórios de uma cultura e a sua essência, e tomei isso como um aviso: eu devia olhar com mais profundidade para a vida, e para a minha biblioteca.

No romance de Milan Kundera "A Lentidão", surge uma personagem checa que, enquanto está numa conferência internacional, aproveita todas as oportunidades para falar d' "o estado das coisas no meu país"; como resultado, é ridicularizado. Está certo que eles o olhassem com desprezo por ele não pensar em mais nada para além do seu país e não conseguir ver a relação entre a sua própria humanidade e a do resto do mundo. Mas quando eu estava a ler "A Lentidão" não me identifiquei com aqueles que olhavam com desprezo o homem que não conseguia deixar de falar do "meu país" - identifiquei-me com esse homem ridículo. Não porque eu quisesse ser como essa criatura risível, mas porque não o queria ser. Foi só na década de 80 que percebi que se - e pedindo emprestadas três palavras do protagonista do meu romance "O Livro Negro" - quisesse "tornar-me eu próprio", não seria ao menosprezar o "homem mímico" de Naipaul pelas coisas que ele fez para ultrapassar as suas maneiras provincianas, ou a sua depressão, mas ao identificar-me com ele.

A Turquia nunca foi uma colónia do Ocidente, por isso, quando os turcos imitaram os ocidentais tal como Atatürk decretou, nunca foi o degradante e amaldiçoado compromisso descrito por Kundera, Naipaul e Edward Said - tornou-se uma parte importante da identidade turca. Quanto aos carinhosos disparates de Efruz Bey, uma personagem tão amada quanto odiada, criada para representar o desejo por todas as coisas ocidentais, que seriam extravagantes e pretensiosas - para os leitores turcos ele não sugere a riqueza da literatura turca -, tudo o que nos mostram é que Omer Seyfettin (1884-1920), o polémico e nacionalista contador de histórias, que por vezes namora com ideias de pureza racial, concebia a ocidentalização como um movimento das classes superiores afastado do povo.

Quando sou confrontado com tais tendências, lembro-me com simpatia de Dostoievski, que ficava tão furioso com os intelectuais russos que conheciam melhor a Europa do que conheciam a Rússia. Ao mesmo tempo, não vejo esta ira, que levou Dostoievski a virar-se contra Turgenev, como sendo particularmente justificada. Extrapolando da minha própria experiência, sei que por trás da conscienciosa defesa que Dostoievski fazia da cultura russa e do misticismo ortodoxo - será que podemos chamar-lhe a biblioteca russa? - estava uma raiva não apenas contra o Ocidente, mas também contra os intelectuais russos que não conheciam a sua própria cultura.

Ao longo dos 35 anos que passei a escrever os meus próprios romances, aprendi a não me rir dos livros escritos pelos outros, a não os pôr de lado, não importa quão ridículos, inoportunos, fora de moda, antiquados, estúpidos, teimosos ou bizarros possam ser. O segredo para gostar destes livros era, talvez, não os ler da forma que os seus autores tinham imaginado... O objectivo era ler estes livros - estranhos, e insignificantes, e intercalados com momentos de espantosa beleza - como se eu estivesse no lugar do autor. Não se escapa do provincianismo fugindo da província, mas fazendo-a nossa. Foi assim que aprendi a submergir-me na minha biblioteca que se expandia lentamente, e também aprendi a manter algum distanciamento. Foi apenas depois de fazer 40 anos que aprendi que a mais forte razão para adorar a minha biblioteca era que nem os turcos nem os ocidentais a conheciam.

Mas agora dizem: "Ganhou o Prémio Nobel, e a Turquia é o país convidado da Feira de Frankfurt. Podia descrever-nos a sua biblioteca turca?" Estou pronto a fazê-lo, e fazer com que outros adorem a minha biblioteca turca, mas agora que me disponho a fazer o que me pediram, receio estar a deixar de a adorar...

(Fonte: Público/New York Review of Books)