domingo, 20 de julho de 2014

Sons da Anatólia e do Bósforo em Porto Covo

 
Como era esperado, os dois primeiros dias de Festival Músicas do Mundo, em Porto Covo, ficarão na memória pela magnífica sessão de encontro entre a cultura persa e a anatoliana, vinda de Kayhan Kalhor e Erdal Erzincan. Dois instrumentos de cordas em diálogo, capazes de calar uma larga parte do largo principal.
 
Há toda uma vida dentro do kamancheh de cada vez que Kayhan Kalhor o toca. Inscrito numa milenar tradição da cultura persa, Kalhor pertence a uma linhagem de músicos para quem a execução do instrumento demora toda uma vida a aprimorar e cujo processo de aprendizagem nunca se esgota, preferencialmente através de um contacto diário com o seu mestre. Por isso, quando ouvimos este aparentado do violino, de aparência frágil e apoiado no chão, na vertical, com o músico ajoelhado como que humildemente prostrado perante a sua grandeza, há toda uma vida a soltar-se das suas cordas, num emaranhado de notas que mesmo no lotado Largo Marquês de Pombal (Porto Covo), em fim-de-semana de arranque do FMM Sines com concertos gratuitos (rodeados de restaurantes, geladarias e roulottes de farturas e cerveja), há largas centenas de pessoas num respeitoso e profundo silêncio que é, antes de mais, um respeito por si mesmas.
 
Erzincan não é mera figura decorativa, note-se. É ele que no baglama (parente do alaúde) vai servindo de contraponto e disputando num equilíbrio sublime o primado melódico a cada momento, numa virtuosa troca de melodias em que, às tantas, é quase impossível separar os dois instrumentos, como se bailassem fundidos um no outro. Tudo isto resulta, seguindo a mesma lógica da vida inteira dedicada ao kamancheh, numa busca de beleza que leva todo o concerto a desenvolver. Do início contemplativo em que Kalhor e Erzincan parecem acabados de ser apresentados, abordando a música com alguma cerimónia, os dois passam progressivamente para uma contagiante sucessão de melodias entrelaçadas a partir de uma execução técnica soberba, como que puxando o público cada vez mais para o centro gravitacional da sua sedução musical. E a prova de que uma música exigente, num contexto de concerto gratuito ao ar livre, pode ser arriscada mas também capaz de se impor, é a tremenda ovação em pé, com o público a manifestar-se ruidosamente e a saltar das cadeiras (quem as conseguiu) como que impelido por molas após 70 minutos de música ininterrupta. Foi como se costuma dizer dos segundos prévios a experiências próximas da morte – viu-se a vida toda a desfilar diante dos nossos olhos. Simplesmente, talvez tenha sido a vida de Kalhor e de Erzincan, exibida de forma hipnotizante.
 
Ao fim da tarde de sábado, o Largo Marquês de Pombal assistira ao israelita Istiklal Trio, formação de qanun, oud e percussões, cuja sonoridade aparece transcrita na perfeição no título de um dos seus temas: “Bluesphorus”. O estreito de Bósforo enquanto símbolo da transição entre Europa e Ásia e a vizinhança de Istambul, estando a música do trio repleta de referências à música clássica turca; os blues como chave para a proposta de modernização que chega sobretudo por via de Yaniv Taichman, que ataca frequentemente o instrumento como se tivessem acabado de lhe tirar das mãos a guitarra eléctrica onde tocava Led Zeppelin e Metallica e substituído por um oud abordado com essas referências de hard rock evoluídas a partir de matrizes blues. Num concerto que vinga, antes de mais, pelos recursos técnicos de Ariel Qassis no qanun, ficaria patente também o facto de a música nunca ser apenas a música num festival como o FMM, representando povos e culturas.

(Fonte: Público)

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